SEQUELAS... E... SEQUELAS
 
Seqüelas não acabam com o tempo. Amenizam. 
Quando passam em minha mente as horas de espera, sinceramente, tenho dó de 
mim. Nó na garganta, choro estagnado, revolta acompanhada de longo suspiro. 
Ainda hoje, anos depois, a espera é por demais agoniante. 
Horas, minutos, segundos são eternidades martirizantes. Não começam hoje, 
adormeceram, a muito custo... comigo. 
Esta espera, oh Deus! É como nunca pagar o pecado original. É ser condenado à 
morte várias vezes. 
Quem disse que só se morre uma vez? 
Sentidos se misturam, batidas cardíacas invadem a audição. Aspirada a respiração 
não é... é introchada. Os nervos já não tremem... dão solavancos. A espera está 
acabando. Ouço barulho de rodinhas. 
A todo custo, quero entrar na parede. Esconder-me, fazer parte do cimento do 
quarto. Olhos na abertura da porta rodam a fechadura. Já não sei quem e o que 
sou. Acuado, tento fuga alucinante. Agarrado, imobilizado... escuto parte do meu 
gemido. Quem disse que só se morre uma vez?
 
Austregésilo Carrano
Poema das 4 horas de espera para ser eletrocutado... (aplicação da eletroconvulsoterapia)
 
 
 
Capítulo 1
 COLÉGIO ESTADUAL DO PARANÁ, ano de 1974. Um grupo de jovens estudantes reúne-se nas escadarias, todas as noites, antes das aulas. Repartem seus sonhos, histórias, inseguranças e aventuras de adolescentes. 
 Um grupo de jovens especiais, ligados por uma afinidade secreta, que desperta a 
curiosidade e alguma inveja dos outros adolescentes. Este grupo é diferente, rebelde, roupas exóticas, cabelos compridos e fala estranha. Comunicam-se com uma certa superioridade e desenvoltura, trocam experiências de um mundo misterioso e envolvente que atrai a curiosidade de todos: as drogas. 
 — Bicho, ontem no foto Clic pintou um vidro de Artane. 
 — Pára com isso, Artane é uma loucura. 
 — Só loucura? é uma tremenda viagem. O que eu vi de aranha subindo nas paredes, cara! Que doideira! Eu tava comendo pipoca doce, e o Adão começou a encarnar dizendo que era mel. Que viagem! Eu enfiava a mão no saco e tirava mel, cara! Dá pra acreditar? Que loucura! 
 — Artane é foda. Você vê o diabo. É o ácido do pobre. E pico, você já transou? 
 — Não, e nem tô a fim... 
 — Você não sabe o que tá perdendo! 
 — Acho sujeira.
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 — Que nada, cara! A gente tem mais é que curtir e depois é só ter cuidado. Você 
toma uns cc hoje, dá o tempo de alguns dias para tomar outra dose. É uma viagem 
que você quer que nunca acabe. 
 — Eu acho muito arriscado. Esse papo de viciar é muito perigoso. 
 — Cara! não tem perigo de viciar, não... é só dar um tempo entre uma picada e 
outra. Deixa de ser bunda-mole. 
 — Bunda-mole é a porra! Eu acho sujeira e pronto. Se você quer correr o risco, 
meu chapa, e se tornar escravo da coisa... o problema é seu, tá legal? 
 — Tá legal, tá legal, não precisa se enervar, não! A escolha é sua, ninguém tá 
querendo fazer a sua cabeça, não. Se você ficar só nas bolas e no fumo, tá limpo, eu tomo uns picos de vez em quando... é só ter cuidado. 
 — Que cuidado? Você entrou numa de colocar nos canos e o cuidado desapareceu, meu chapa. E se vacilar, vai ser garotão de bicha, só pra conseguir o bagulho. E aí, meu irmão, a barra pesa. Acho que o bunda-mole aqui é você, cara! 
 — Qual é, cara? Tá numa de ofender? Que papo mais sem rumo, transar com bicha por bagulho... eu sou macho! 
 — Olha, pelo papo que eu ouvi, quando a coisa te domina, a barra fica diferente. 
Você se vende por uma picada. Cara, eu não tô nessa mesmo. 
 — Pra viciar não é tão fácil assim. O cara tem que vacilar muito. 
 — Vacilar... o lance é que pra segurar, fica difícil. A viagem é uma loucura...
e ela te leva. Aí, cara, a coisa perde o controle, você viciou. Tá fodido. 
 — E aí? Faz tratamento... 
 — Tratamento... onde? em hospício de loucos? Você tá brincando. Cara, não tô 
querendo dar uma de careta, não. Só que eu acho que o lance de colocar na veia é 
uma puta de uma sacanagem, pois você é a caça. E pra coisa te engolir é dois toques.
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 — Tá legal, cada um faz o que quer. Vamos mudar de papo, já ficou cavernoso... Depois da terceira aula, vamos lá pro foto... tô a fim de uns Artane. 
 — E uma boa. Só espero que tenha sobrado. Tava a turma toda ontem lá. Você não conhece todos. 
 Não éramos uma turma das drogas pesadas. Um ou outro, às vezes, experimentava o pico. Mas no geral ficávamos mesmo com as bolas, os xaropes e o fininho. As bolas e os xaropes, como Rumilar, comprávamos na maior limpeza, nas farmácias, que não exigem receitas. Buscávamos cogumelos em campos, onde as vacas eram as nossas madrinhas. Depois de uma chuva, fartura de cogu... 
 Raramente pintava uns graminhas de coca, que a maioria cheirava. Nem seringa tínhamos. Eram tantas histórias, de alguém que se foi por uma overdose, que minha galera tinha o temor do pico. Além disso ninguém trabalhava e a coca sempre e foi cara. Nos reuníamos no que denominamos foto, um estúdio fotográfico, localizado no centro de Curitiba. 
 Ficávamos rondando o local, impacientes, quando os pais do 
Edson e do Issan, que eram japoneses, se demoravam mais para sair. 
 — Aí, Paulão, que horas são? 
 — Vinte pras dez. Será que os velhos estão no foto ainda? 
 — Só tão. Têm dias que eles abusam. 
 — Ah!... Eles abusam? — rimos. 
 — É, ué!... Lá vem o Edson. 
 O foto ficava no meio da quadra, numa ruazinha estreita. Na esquina, esperávamos o sinal de barra limpa. Os velhos dos japoneses haviam comprado uma casa na Vila Hauer. Antes, moravam no foto. Lá deixaram os móveis antigos. 
 — E aí... meus coroas já vão sair! — anunciou Edson. 
 — Cara, o Paulão tá com uma quina de fumo, e é do bom. 
 — E do Boquera? — perguntou Edson a Paulão, se referindo ao bairro do Boqueirão. 
 — Só. Lá tem pintado coisa boa.
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 — E você chegou bem em casa ontem? — continuou Edson. 
 — Você tá querendo dizer hoje de manhã? Seu irmão acordou a gente em cima da hora. Quase que seus pais dão um flagrante em todo mundo! 
 — Só que a gente tem que maneirar. Quando os coroas chegaram hoje, sobrou pra mim e pro issan. 
 — Eles viram a gente saindo? 
 — Não. Ficaram putos com a zorra que tava o foto... café derramado, pipoca lá em cima. Numa dessas, os velhos encontram umas bagas... aí fica estranho. 
 — E só a rapaziada cooperar. Antes de sair, dar uma geral em tudo. Mas ontem a 
festa foi demais. Não deu tempo, acordamos em cima da hora... — O Austry me disse que vocês moravam aqui no foto. 
 — Só. Agora eles compraram uma casa... 
 — Daí a limpeza. O foto fica por nossa conta. Os gatos saem e as ratazanas fazem a festa! 
 — O Issan tá nos chamando. Vamos nessa! — disse Edson. 
 Paulão, de imediato, tirou o pacotinho de fumo e uma seda, catando as sementes. 
Pink Floyd tocando, Issan na cozinha preparando um rango. As vezes vinham uns 
pratos diferentes, a galera adorava. 
 O foto tornara-se para nós um segundo lar, ou mais que um lar. Entre aquelas paredes, éramos nós mesmos. Sentíamo-nos os astros do rock, reis dos malandros, super-homens, os cabeças-feitas. Éramos os melhores. Mil fantasias, um espaço só nosso. Um palco de sonhos e ilusões, onde malucos eram todos, na maior limpeza... 
 Na entrada, pela rua estreita, uma porta de grade que, com macete, podia-se abrir. Ficava sempre abaixada, era o nosso alarme. Em seguida, as vitrines, com pôsteres e máquinas de fotografia. Abrindo a porta, com metade de vidro, estamos no salão. Um pequeno balcão, sofá já gasto, máquinas fotográficas em cima da mesa de retoques, algumas de pezinhos. Uma televisão em cima de uma cadeira.
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Os holofotes misturavam-se com os guarda-sóis. Algumas sombrinhas japonesas, num canto, formavam um cenário. Perto da porta que dava acesso ao grande salão, ao lado da escada que levava à sobreloja, um enorme espelho. O teto era muito alto, pois para cima era um edifício residencial. Nos fundos do grande salão, uma saleta e uma segunda entrada para o foto. Havia também uma sala escura, para revelação. Incrível que, após tantos anos, a lembrança do foto esteja tão viva em minha mente. Como amávamos aquele palco de ilusões! 
 As noitadas repetiam-se. Rolava um baseado após o outro. O vidro de Artane esvaziando-se. A grade da entrada subindo. Issan, o primeiro a se levantar. Assim o salão ia enchendo. Eliane, a mascote da galera. Catorze anos, eu a trouxe. De imediato foi adotada pela turma, a neném da casa. Eu tinha dezessete, o Edson, um dos mais velhos, dezenove, todos nessa faixa. Eliane, a irmã mais nova de todos, era protegida. Ninguém a tocava. Alta, com longos cabelos castanho-escuros. Grandes olhos azuis, linda Eliane, mas tolinha. Fumava e ria até da sombra. A grade subia, Issan se esticava. Era o Herbert, o alemão... um loiro de cabelos compridos e lisos. Peludo, barba sobrava, boa-pinta, papudo. Ele sabia de tudo. Adão também chegara, o patinho feio da turma. Entupia-se de Artane. E o Negrão — que chegara com Herbert —, magrão e alto, beiçudo, assustava no escuro. E a Suzi, uma morena gostosa, cabelos bem curtinhos. O 
alemão, boa-pinta, era o seu galã. E a Kátia, uma nissei, gatinha do Edson. Todos, naquele palco... 
 — Pessoal, sabem onde eu encontrei o Negrão? 
 Ficamos esperando a resposta. O Negrão havia chegado já muito ligado. Jogara-se no sofá. Cruzou os braços, e fazia beicinho. 
 — O Negrão tava lá na praça Rui Barbosa, andando de um ponto de ônibus ao outro, assim... — (Herbert cruzou os braços e imitou até o beiço do Negrão.) 
 — Aí, Negrão, olha a bandeira! Você fica dando essa furada, azara a de todos nós. Se segura, meu! — (Edson, cortando as nossas gargalhadas.)
 
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 — Tá legal, tá legal. Não vou dar mais bobeira, e tudo bem; tá legal... — falou, tropeçando nas palavras. 
 — Acho bom, Negrão. A Entorpecente tem um patrício do Edson e do Issan, que é barra pesadíssima. 
 — O Herbert tem razão. Esse delega japonês é o cão — (Adão). 
 — Esta city tá a maior sujeira depois que aquele cara morreu de over — (Suzi). 
 — É, overdose é foda... se a gente vai com muita sede ao pote, puft! Já era! — 
(Herbert) 
 — Que cara? 
 — Um cara do Teatro Guaíra. A barra tá suja, os homens tão quentes. Não dá pra marcar touca! — (Suzi) 
 — É fase. Quando pinta uma sujeira dessas, sai a manchete. Os homens têm que 
mostrar serviço. Aí, os putos caem em cima de qualquer um. E só uma fase, depois acalma — (Adão). 
 —Já pensaram se os homens chegam aqui no foto? 
 — Pare de agourar, Issan! — (Kátia, batendo três vezes.) 
 — Mas tem a ver. E se os homens seguem um de nós, como aconteceu com o Negrão, hoje? — (eu) 
 — Não não ponham nesse rolo. Eu tô aqui na minha, não falei nada — (Negrão, fazendo beicinho). 
 — É esse Artane que deixa a gente bobo. Essa bola é do peru, é bom a gente dar um tempo — (Issan). 
 — Que nada, cara! eu me amarro nuns Artanes. — (Herbert, um dos mais velhos no trato com as drogas.) 
 — Você não dá vacilo! E raposa velha. Mas o pessoal que tá no bagulho há pouco tempo tem que maneirar. Senão a barra fica feia — (Edson). 
 — E o Abulemim? — (Eliane, que não abria a boca.)
 — Abulemim, Rumilar, Optalidon, tudo vai da cabeça de cada um. Esse papo tá enchendo o saco. Tá todo mundo entrando numa de horror.
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Vamos mudar de assunto — (Suzi, tirando Herbert pra dançar). 
 — É, mas o Artane... dizem que dão pros malucos nos hospícios, pra acalmá-los... 
 Assim as noites aconteciam. Fumando, tomando bolas, vendo TV jogando cartas, conversando abobrinhas. O Edson transava com a Kátia, o Herbert com a Suzi. Os filhos de Deus que sobravam se entretinham com os bagulhos. Levávamos garotas para o foto, mas não fazíamos suruba. Cada um dava sua trepadinha, sem nenhum bobão se intrometer. Não dava para levar qualquer garota para amar no foto. O broto tinha que transar a nossa. Se fosse careta, não levávamos. A deduração era moda. 
 — Aí, pessoal! Que tal a gente ir pra Camboriú, neste final de semana? — (Herbert, parando de dançar.) 
 — Tá todo mundo duro — (Issan). 
 — No dedão, bicho! — (Suzi) 
 — É uma boa, a gente leva uns sanduíches, uma grana para as cocas... Coca-cola, gente! — (A declaração da Kátia provocou risadas.) 
 — Não esquecendo a vaquinha, pros bagulhos. — (Adão) 
 Sexta-feira era o melhor dia, o foto não abria no sábado. Dormíamos lá mesmo, com exceção da Kátia e da Eliane. No sábado, quem ia viajar, dormiu no foto. 
Cada um deu a sua versão em casa. Na estrada, em um posto de gasolina, o primeiro empecilho. Como conseguir carona para oito? 
 — Tudo bem gente, vamos nos dividir. Eu, Adão, Suzi e a Eliane — sugeriu o Herbert, coçando sua barba ensebada. 
 — Pára aí! Vamos ficar eu e a Kátia com dois marmanjos? Tá brincando... - disse Edson, reclamando. 
 — Péra aí, gente! eu, a Kátia e a Eliane vamos conseguir carona — garantiu Suzi, muito segura. 
 — Só pra vocês três, eu acredito — cortou Issan, gozando. 
 — Pra todo mundo... e mais alguém que queira ir junto. Conosco não há enrosco! — retrucou Kátia, fazendo charminho.
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 Existem muitas coisas para as quais as mulheres têm mais jeitinho do que os homens. Se alguém podia conseguir carona para oito, eram aquelas gatonas. E logo estávamos divididos em dois caminhões, rumando para Joinville. Depois, um ônibus e caímos em Camboriú. Montamos as barracas longe dos agitos. Era estratégico, assim as nossas loucuras estariam mais resguardadas. 
 As estratégias nem sempre funcionam. A malucada tinha um sexto sentido. Num piscar de olhos estávamos rodeados de malucos, querendo e trazendo os baseados para serem desfrutados. Todos sem passado nem futuro. Só curtindo o verde, que é o calmante dos deuses. Som de um gravador. Rock e violão se misturando. Valia tudo. Casais entrando e saindo das barracas, seguiam à risca o mestre John Lennon: “Façam amor, não façam a guerra.” O pessoal empenhava-se nessa frase. 
 No domingo, eu, Adão e o Issan fomos a uma sorveteria. Compramos sorvetes de bola. O vidro de Artane, na bermuda do Adão. Tirou alguns comprimidos e os jogou no sorvete. Deve ter jogado uns dez, chupou o sorvete mais louco do mundo. No acampamento, cada um fazia alguma coisa. De repente, em uma das nossas barracas, um barulho que parecia tapas. Tinha alguém dentro, quase derrubando a barraca. Corremos em socorro. Lá estava o Adão, com um chinelão de pneu nas mãos, batendo na cabeça. Batidas fortes, nos disse que estava com a cabeça cheia de ratos, e tinha que mata-los. Tiramos o chinelo de sua mão. Correu para fora da barraca e enfiou a cabeça no balde de água. Segurou o máximo que podia e nos disse: 
— Viram?!... como eu matei todos os ratos afogados? — Entrou na barraca e bodeou. 
 Tudo aquilo para nós era divertido. As pirações tornavam-se assuntos. A volta para Curitiba foi mais tranqüila. O mesmo esquema, as donzelas dando de dedinho... Não demorou nadinha, um carrão branco parou. A rapaziada rapidinho arrodeou. Era um uruguaio em férias, ia para o Rio, tinha um amigo que vinha logo atrás. Iriam se encontrar com os parentes que já estavam no Rio de Janeiro.
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Não deu outra, chegamos em Curitiba de chofer estrangeiro e dois carrões importados. 
 No colégio tudo corria bem. Eu, Issan e o Paulão fazíamos o terceirão, que era o científico e cursinho para o vestibular. Os agitos eram constantes, mas não descuidávamos dos estudos. Nossas notas eram regulares e estávamos em abril. Era só manter a média e passar de ano sem ficar para recuperação. 
 Eu gostava muito das aulas que recebíamos na escolinha de artes. Adorava a professora de expressão corporal. 
 — Professora Eloá, a posição de feto é com os braços entrelaçados nas pernas? 
 — Não se prenda às regras, Austry. Crie! Ache a posição. Entre na música. Criem, desabrochem. Vocês são uma flor desabrochando, nascendo. Vamos, gente, criando. 
 — Mas a senhora não ia dar aula de dicção? — pergunta Issan, que também se interessava. 
 — Calma, vamos primeiro ao corpo. Vocês têm que aprender a se expressar com ele. Tudo nele é expressivo. Trabalhem com cada parte, as mãos, os braços, os ombros. Tudo fala em vocês e sugere alguma coisa. 
— E a aula de dicção? — insistiu Issan. 
— O teatro é um todo. Não adianta o ator ter uma perfeita dicção sem expressão, Issan. Na semana que vem, voltaremos ao assunto. Agora, comecem os exercícios! Não temos muito tempo... 
 Pena que essas aulas eram dadas apenas nos recreios. Era o que mais se aproximava do que eu realmente almejava ser: um ator. Nunca perdia uma aula dela. E com sua ajuda montamos uma peça de teatro. Competimos num festival amador, realizado e patrocinado pelo Teatro Guaíra ou coisa parecida. Competimos com alunos de teatro, também de outros estados. Obtivemos o 3º lugar? Foi uma grande satisfação para todo o colégio. O diretor veio nos dar os cumprimentos. 
 Geralmente, após as aulas de arte, eu e o Issan íamos para o foto e, quando chegávamos, o pessoal já estava embalado.
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 Passávamos tanto tempo lá que minha mãe chegou a sugerir que eu levasse uma mala de roupas e a escova de dentes e aparecesse de vez em quando, para visitá-la. Mas havia uma explicação para essa atitude. Até doze ou treze anos fui muito vigiado, não tinha a liberdade de ser moleque. Isso me criou sérios problemas de relacionamento, prejudicando os meus estudos no ginásio. Eu era muito medroso, tinha medo de brigar. Os outros moleques se aproveitavam desse medo. Eu apanhava de minha mãe o suficiente, em casa. Ela se concentrava muito em sua profissão de costureira e não admitia que eu a perturbasse. 
 Mas as encheções de saco dos outros moleques chegaram ao limite. Um belo dia, abri a cabeça de um deles com uma pedra. Quase fui expulso do ginásio. Depois da conversa com o diretor, e algumas explicações, minha mãe começou a me soltar, mais e mais. E a liberdade da rua é apaixonante. De repente, o mundo se apresentava à minha frente. Cresci um adolescente revoltado, como a maioria dos adolescentes de classe pobre. Vendo tudo, querendo tudo e não tendo nada. Meus velhos assumiram uma atitude de passividade. Não ousavam prender-me em casa. Sabiam que eu iria agredi-los. Não fisicamente, mas verbalmente. Não tinham mais nenhum domínio sobre mim. 
 Continuava meus estudos. Era uma porra-louca dentro dos colégios, mas passava de ano. Nunca havia repetido. Meus estudos — e eu sabia que só através deles poderia ser alguma coisa na vida —, eu os levava com seriedade, mesmo com todas as maluquices que fazíamos com as bolinhas e o fumo. Nas férias de julho, fui convidado por um amigo a conhecer o Rio. 
 Rio de Janeiro! Sempre tive um fascínio por essa cidade. Não deu outra. Arrumei a mochila, agitei uns trocos. Mercedes-Benz, chofer, trinta e seis lugares. Chegamos no paraíso encantado, Rio de Janeiro. 
 Meu amigo tinha me dito que tinha uma tia no Rio, e que poderíamos ficar na casa dela. Só não mencionou que ela morava numa favela, e tinha uns seis filhos.
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E também não contávamos com o mulato que estava morando com ela. Ele não gostou muito das nossas caras de gringos. 
—É, Austry, a barra aqui não tá muito legal. Vamos deixar as mochilas por aqui... e amos à luta. 
— Você não falou que sua tia ia dar uma força? 
— Eu não sabia que tinha um gigolô na parada. 
— Gigolô, com seis barrigudinhos. Cara, sinceramente tô com dó dele... 
— Tá limpo, vamos pra Copacabana, avenida Atlântica, Posto 6. Cara, você vai se 
amarrar... 
— Por enquanto, tudo tá cheirando a presente de grego. Eu pensava que o Rio fosse uma cidade maravilhosa. Só vi favela e lugares feios... 
— A gente tá no subúrbio do Rio. Espera até a gente chegar na Zona Sul. Aqui só dá pé-de-chinelo. Lá na Zona Sul, o papo é outro. 
 Foi amor à primeira vista. Prédios que formavam um imenso paredão, com uma curva suave. Pessoas passando como num formigueiro. O mar calmo em contraste com o agito e o barulho dos automóveis. Garotas e mais garotas, com biquínis, uma mais gostosa que a outra. Meus olhos não sabiam onde parar, queriam ver tudo ao mesmo tempo. Andando pelo calçadão, sentindo o vento vindo do mar, olhava apaixonado, estava abismado com tanta beleza. Aquele cenário merecia mais uma vez, entre as centenas de vezes, ser filmado. Que cidade louca, papai e mamãe, estou em Copacabana!... 
— Tudo isso aqui é lindo... 
— Mas sem grana, meu chapa, não dá pra encarar. 
— Você já ficou aqui um tempo. Sem grana? 
— Sem grana não, na batalha, malandro. 
— Então, vamos nessa. Batalhar! Quantos eu tenho que matar? 
 Entramos numa galeria. Não era muito bonita, preferia o visual lá de fora.
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Chegamos num barzinho do outro lado da galeria. Meu amigo logo achou quatro conhecidos sentados numa das mesas e apresentou-me. Eram bichas. 
— Esse é um amigo. Veio comigo lá do Sul. 
— Gauchinho, tchê! — exclamou uma, bem empolgadinha. 
— Paranaense — respondi seco. 
— Humm... machão, seu amigo — disse a bicha, me provocando. 
— É um cara legal — respondeu meu amigo. 
— Não parece! — comentou a bicha, virando a cabecinha. 
— Aí, tô chegando — falei pro meu amigo. 
— Calma, gauchinho, pra que pressa? — atirou a fresca. 
 Virei as costas e entrei na galeria. Meu amigo veio atrás, cheio de moral, pegou-me no braço e falou irado. 
— Péra aí, cara, você disse que queria batalhar? 
— Batalhar... é isso, comer bicha? Tá por fora, meu chapa! Nunca comi bicha e não vai ser agora... 
— Cara, deixa de onda! E só dar uns fincões nesses putos, pinta rapidinho uma grana. Um apê pra ficar, deixe de ser otário! 
— Otário é a porra. Você falou em Curitiba que a gente ia ficar na casa de sua tia. Não me falou que a gente ia comer bicha. Se eu soubesse não teria vindo. Qual é, cara? 
— Tá legal. A grana dá só pra ir buscar as mochilas. Chegando aqui a gente se separa. Cada um na sua, falou? 
— Tá limpo. 
 Nos separamos. E lá estava eu, sentado num dos bancos de pedra na avenida Atlântica. Eram altas horas da noite. 
 A barriga parecia um temporal. Não roncava, trovejava. A mochila estava pesando o dobro, onde deixá-la? Ficar com ela era incomodo, além de algum vagabundo poder querer tirá-la na mão grande. A cidade já não parecia tão bonita e acolhedora. Esta mochila... tenho de deixa-la em algum lugar, num barzinho. 
 O garçom indicou-me o gerente. Lancei-lhe um bom papo, guardou a mochila, com minha promessa de apanha-la pela manhã. 
 
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 Fiquei rodando pelo calçadão um tempo. O sono já pedia a sua hora, e o corpo 
estava pra lá de cansado. Olhando aquele areião de praia, na minha frente... ouvindo o barulho do mar... o agito, agora mais suave. Um céu todo estrelado, o teto mais lindo do mundo. Às vezes o meu pensamento era roubado por importunos que, ao me verem, bem rapidinho sumiam. O calçadão, acima da areia, oferecia uma sombra generosa, a luminosidade da avenida não me incomodava. Mas a areia que entrava pela minha roupa, esta sim, dava um coceirão. Fora isso, sem muitas reclamações, adormeci. 
 Aos primeiros raios de sol, um cheiro excitante de maresia com bacalhau podre 
foi me penetrando. O sol, no meu rosto sujo de areia. Alvo do sul, queimava como brasa de cigarro. Despertei. Percebi que havia dormido acompanhado. Alguns metros à frente e atrás, outros hóspedes acordando. Tirando a areia dos olhos, vi alguns ainda nos braços de Morfeu. Ao longe, montinhos individuais ou duplos parecendo um só. Todos hóspedes do maior hotel de milhões de estrelas da Cidade Maravilhosa... Primeiro pensamento: voltar para casa... mas como? Tô duro, sem grana nem pra um pão d’água! O hóspede vizinho chama minha atenção. 
— Tudo bem? — disse um mulato, com uma jaqueta azul escolar. 
— Beleza. E aí? 
— Você não é da redondeza? 
— Sou paranaense. 
— Ah! você é da Paraíba, mas não tem cara, não. 
— Não! eu sou do Paraná, lá de baixo, do Sul. 
— Ah! eu tinha entendido paraibense... que é da Paraíba, né? 
— Mas estou indo embora. 
— Você chegou quando? 
— Ontem.
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— E já vai embora? Eu tô aqui fais treis meis... 
—Você é de onde? 
— Da terra boa! Da Bahia, Salvadô. Conhece? 
— Que nada... cheguei só até aqui. 
— Mas você nem chegou e já tá indo? 
— E fazer o quê? vou tentar vender uma jaqueta e comprar uma passagem pra 
Curitiba. 
— Não precisa ir, não! Eu tô há treis meis, só na batalha... 
— Tá comendo bicha, cara? 
— Qual é, amizade? Essa de comê bicha não é comigo, não. Tô na batalha, pedindo grana. É só chegá no pessoal e contá um sete um e pronto. 
— Um sete um, que é isso? 
— Tô vendo que você é mesmo de outras bandas. Um sete um é uma estória, um lero, 
compadre. Você chega no cara assim, ó: “Aí, cidadão, por favô, um minutinho, eu 
não sou daqui e tô precisando í embora. Preciso comprá uma passagem pra minha 
terra. Será que o cidadão pode dá uma força pra minha pessoa?” 
— E funciona? 
— Cara, é mole. Carioca gosta de boa educação. É só gastá o portugueis e pronto. Não dá otra. Só não dá pra chegá falando gíria. Aí cidadão! não esqueça do cidadão, dá boa impressão. Tem cara que dá uma baba boa. Dá pra comê e pegá até um hotelzinho lá na Lapa. 
— Então, qual é a tua, dormindo na areia? 
— Co’a grana do hotel, eu comprei um bagulho. Deixa eu acordá direito e vamo tomá aquele café... 
 Fiquei vendo o mulato se despir. De sunga, o hóspede correu até o mar. Parecia boa gente. Se fosse como ele disse, talvez eu deixasse pra ir embora amanhã. O sol já se fazia sentir. Vestiu a roupa, ainda molhado. Atravessamos a avenida. No calçadão, a primeira abordagem do mulato. Um homem de meia-idade. 
— Aí, cidadão! pofavô... um minutinho. Eu e meu amigo não somo daqui...
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Ele é lá de baixo, do Sul, e eu sou lá de cima. A gente tá precisando de uma ajudinha pra tomá um café. Será que o cidadão pode dá uma forcinha pra gente? 
— Vão trabalhar, seus vagabundos! 
 O mulato ficou chocado. Quando caiu em si, falou irado: 
— Aí, cidadão ignorante, paraíba bundão... Esse é corno e ficou sabendo hoje! — O cara já estava virando a esquina. 
— É, não deu certo... — falei, desanimado. 
— Acontece, de repente você pega um de cu virado. 
— É, Negão, não vai ser fácil... 
— Negão não, meu nome é Rodolfo. Minha vó me botou esse nome em homenagem a um artista de cinema. Um cara famoso no mundo todo. — Onde estivesse, o Valentino deve ter-se coçado. 
— Tá legal, Rodolfo. Meu nome é Austry 
— Você é gringo, cara? 
— Não, o meu nome verdadeiro é Austregésilo. Austry é apelido. — O filho-da-puta se desmanchou de rir. 
— Como é que é, Austresésimo? Cara, que palavrão! 
— Rodolfo, para um negão... também não pega bem!... 
— O que é isso, cara, você nunca ouviu falá no Rodolfo Valentino? 
— Dele sim, mas que era um negão... tô sabendo agora. 
— Tá legal, Austregélio, sem gozação co’ as fantasia de nossos coroa... Vamo à 
luta, que a barriga tá roncando!... 
— Também tô com fome, desde ontem. 
— Aí vem vindo uma dona. Mulher é mais fácil, elas ficam com dó. 
 Quando nos aproximamos, ela ficou assustada. Diante de um crioulo magricela, 
alto, com uma jaqueta de pano azul, calça vermelha desbotada de velha, eu, um magricela branco e cabeludo, com calça jeans desbotada, qualquer um ficaria assustado. Mas eu estava decidido a não voltar para Curitiba sem antes curtir um pouco o Rio de Janeiro. Fazer uma viagem dessas e voltar derrotado não fazia parte da minha personalidade.
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Vamos à luta, Rodolfo, pensei comigo..., 
— Não precisa se assustá não, dona! É que eu e meu amigo não somos daqui... bem 
e... a gente tá com fome. — A mulher nos olhou, analisou e... 
— É melhor pedir do que roubar. Venham comigo! Entramos no primeiro barzinho, virando a esquina do calçadão. Pediu duas médias. Comi duas coxinhas, fiquei com vergonha de pedir outra. Rodolfo Valentino já não tinha esse preconceito. O safado comeu três. Mas, analisando, acho que a dona pagou tudo sem reclamar, pois na hora da abordagem ela pensou que fosse um assalto. Ficamos comendo. Antes, porém, agradecemos à gentil senhora. Ela seguiu o seu caminho. 
— Cara, eu não lhe disse, que os cariocas são gente boa? Tem uns que pagam até um 
PF. É só saber armar um sete um... 
— Me pareceu que a mulher ficou assustada... 
— Qui nada, cara, são gente boa mesmo — disse entupindo a boca com a coxinha. 
— Teu um sete um foi rápido e objetivo, demos sorte... 
— Qui nada cara, eu já tô... 
—Já sei, há treis meis aqui no Rio!... 
— Qual é, gozação? Vamos pegá uma praia e depois a gente batalha o rango do almoço... 
 Estava prevenido, com calção de banho. Era mês de julho e o sol estava de rachar. Para quem vinha de uma cidade fria, onde nesse mesmo mês a temperatura chega, às vezes, abaixo de zero, estava uma fornalha. 
— Você tá parecendo gringo. — Estávamos deitados na areia. 
— Por quê? 
— Gringo chega aqui e no mesmo dia quer ficar com essa cor de jumbo, aqui do mulato. 
— Jumbo é elefante... 
— Calma, pimentão! como você é branquela. Num tem sol lá onde você mora?
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— Tem, só que agora é mais fácil cair neve do que deixar alguém com cor de elefante. 
— Qual é, seu branquela azedo!... 
Atirou-me areia, revidei, começamos a brincar de luta. Começou a primeira amizade que eu fazia no Rio. O Negão ensinou-me como batalhar, sem me prostituir. Os hotelzinhos da Lapa eram baratos. Mas o local de trabalho era Copa. Nem Ipanema era tão bom como em Copacabana. Um dia, passando pela rua Pompeu Loureiro, tinha uma senhora num ponto de ônibus. Pareceu-me a pessoa certa para descolar uma grana. Já batalhava sozinho. 
— Dá licença, senhora! Eu não sou daqui, estou é passando uns dias de férias aqui no Rio. Estou sem nenhum dinheiro. A senhora poderia colaborar comigo, para um prato-feito? 
— Você é de onde? 
— Sou de Curitiba, Paraná. 
— E por que você não volta para sua casa, lá no Paraná? 
Aprendera que falando a verdade as pessoas percebiam e auxiliavam com mais facilidade. Uma carinha de ingênuo, tudo isso auxiliava no trabalho, para um bom resultado. 
— É que estou sem dinheiro. 
— Você quer que eu lhe compre uma passagem? 
— Uma passagem, pra quando? 
— Ué... para hoje. 
— Mas eu gostaria de ficar mais uns dias... 
— Então você quer curtir, como dizem vocês, jovens de hoje. Ficar vadiando e tomando tóxico! Não tenho dinheiro para vagabundo! — disse ela, voltando as costas para mim. Fiz o mesmo e fiquei abordando outras pessoas. Não dava para achar ruim, eram os ossos do oficio. Se fosse discutir, os homens vinham e me encanavam por vadiagem. Sem eu perceber, a mesma senhora se aproximou. 
— Me desculpe, nós coroas esquecemos freqüentemente que já fomos jovens.
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Está aqui o dinheiro para o seu prato feito. E se cuide garoto, o Rio é perigoso... 
— Muito obrigado, dona! 
Com a grana que aquela gentil senhora-mãe havia me dado, ranguei um PF e sobrou para o cigarro. Agora, era fazer a digestão e pegar uma praioza. Quem sabe, hoje 
eu trocava o óleo, pois já estava há uma semana no Rio... e nada. Eu nunca fui tão menosprezado. Afinal, pinta sempre tive... ou será essa roupa que até agora não mudei? Só pode ser. Aqui no Rio tem dez mulheres para cada homem, se tem. Tem safado aí com as minhas. 
O Negão tinha ido ao morro do São Carlos buscar uns fininhos, que ele transava na praia e no calçadão, à noite. Preferia ir sozinho, porque gringo a galera não olhava com bons olhos. À noite, não encontrei o Negão. Comecei a rodar pelo calçadão, passando por uns bancos de pedra. Tinha um broto. Dava pra sacar que também estava na mesma situação que eu. Tinha uma figura de cabelos encaracolados ao seu lado, o cara estava falando por ela também. 
Quando passei por eles, a gata não tirou o olho de mim. O encaracolado notou a indiscrição da donzela, mas continuou falando. Fui até a primeira rua transversal, me mordendo mentalmente. Por que a gata não tá sozinha? Voltei. Não podia recusar um convite como aquele. Sentei num banco próximo de onde estavam. Comecei a analisar as possibilidades. Se o cara for só amigo dela, tá limpo. Se não for, a coisa pode esquentar. Mas pelo tamanho dele, dá pra encarar. A garota continuava a me olhar indiscretamente. E eu não sabia o que fazer. 
— Aí... vem cá! — ela me chamou. Na minha terra isso não acontece. 
— Sente aí, este é meu amigo. — Senti alívio. 
— E aí, tudo bem com vocês? 
— Cara, você é lindo... — Fiquei azul e verde, O broto já chegava de sola.
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— Você também é muito bonita — disse eu, meio gaguejando. 
— Amor à primeira vista! — O encaracolado riu de nós. 
— Você não é daqui? — perguntou a gata. 
— Sou do Paraná, e você? 
— Sou de Macaé... ele, tô conhecendo agora. 
— Sou capixaba, tô aqui no Rio há uns cinco meses. 
— Eu estou há uns quinze dias — afirmei mentindo, pois não queria ficar tão para 
trás. 
Percebi que o encaracolado ficou puto pelo fato da garota ter-se interessado por mim. Veio de sola: 
— É! macaco novo. Você tem que aprender muito por aqui. 
— Por que, cara, você se considera mais esperto? 
— Não é nada disso. Pergunte à fera, que ela explica. Eu vou tomar um direito. — 
Levantou-se e saiu. 
— É, cara! ele tava te dando um toque. Os homens não dão moleza com quem fica 
vadiando de bobeira aqui pelo calçadão. Essa avenida é a maior sujeira. A lei de vadiagem. Se pegam, você fica trinta dias enjaulado. 
— Tô sabendo. Negão, um amigo, me falou. Na minha terra nunca tinha ouvido falar dessa lei. 
— Esse pessoal que você vê aí, andando pela Atlântica, como a gente, a maioria é 
de fora. Vêm pra cá e não conhecem ninguém... aí ficam na batalha, uns transando 
com bichas... se prostituem... ou transam fumo. 
— Eu estou aqui há quinze dias e não estou comendo bicha e nem transando fumo... 
— Então, tá pedindo?... 
— É isso aí... 
—Já rangou? 
— Não. 
— Então, vamos rangá! 
— Tô duro, mas tenho cigarro. 
— Depois a gente fuma. Vamos nessa... 
Puxou-me pela jaqueta. Num bar, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, o encaracolado se afogava num sanduíche esquisito.
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— Aí! vai uma mordida?... 
Mordi, o gosto não era ruim. 
— Que sanduíche é esse? 
— Sanduíche de malandro. Você compra uma coxinha, enfia dentro de um pão, joga pimenta, molho à vontade. Se sustenta, eu não sei, mas que enche, enche... 
— O lance é... encher! 
Quando a gata, a Verinha, veio do banheiro, pediu a mesma coisa para nós. Comemos, rimos e saímos para a grande passarela dos aventureiros: a avenida Atlântica, linda, e misteriosa... 
Já estava com a Verinha nas maiores intimidades. Abraçadinhos, nossos estômagos ainda roncavam, mas felizes por estarmos vivendo. Eu me sentia um gigante. Não tinha aonde ir. A cidade toda era nossa, qualquer lugar servia. Podíamos dormir em Copacabana, em Ipanema, no Arpoador, no Leblon, enfim, toda a Zona Sul estava à nossa disposição. 
Entramos em uma rua pouco iluminada. O encaracolado acendeu um baseado, desfrutamos e voltamos à avenida. 
Caminhamos em direção ao Arpoador. Cruzávamos outros jovens bem vestidinhos, limpinhos. Encaravam-nos assustados, outros desviavam. Lembrei-me de que, em Curitiba, nos chamariam de maloqueiros. Mas ali era diferente, eram os súditos 
abrindo passagem ao seu rei e à sua rainha. Não esquecendo o digno fidalgo Encaracolado, que nos seguia curtindo sua viagem, sem nada dizer. 
Iríamos pernoitar na suíte real do Arpoador e, lá chegando... o ilustre fidalgo, com os pés, ajeitou o pó dourado, fazendo um travesseiro. Acomodou-se no seu nobre leito, entregando-se aos laços dos sonhos, que não deveriam ser poucos. 
Buscamos a suíte real, a poucos metros do fidalgo. A brisa fresca, o cheiro do mar, reflexos das luzes da cidade confundiam-se com o luar e saboreavam nossos corpos nus.
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Fizemos amor que causaria inveja a muitos reis e rainhas de verdade. 
Pela manhã, eu não era apenas um montinho na areia, mas dois em um... Chamei pelo fidalgo, tinha desaparecido. Fidalgo filha-da-puta! levou a minha jaqueta... Desgraçado! eu me amarrava naquela jaqueta jeans, com uma águia nas costas. 
— Aquele puto! levou minha jaqueta. 
— Calma, Austry, não adianta ficar nervoso, a gente encontra ele. 
— Calma, porra nenhuma... a jaca não era sua! 
— Vai adiantar a sua adrenalina subir? Deixe abaixar... Mais tarde a gente cruza 
a figura. 
— Você deve saber onde encontrar esse ladrãozinho... 
— Não sei, não! Quando você apareceu ontem, o figura tinha acabado de chegar. 
— Vamos lá pra Atlântica, eu vou acertar com esse desgraçado! 
Rodamos duas noites atrás do fidalgo ladrão, e nada. Fomos apanhar minha mochila, o cara já ia jogar no lixo. Agradeci. Queria encontrar aquele puto que me fizera de otário. Numa dessas noites, topei com um broto de Curitiba... 
— Aí, ferinha, tá perdida por aqui? 
— Austry?! O que você está fazendo aqui? 
— O mesmo que você, perdido... 
Beijos e abraços. Ela era uma gracinha, loirinha, usava cabelos curtos, magrinha, não esquelética. Um corpinho que era uma delícia, uma gatinha pra malandro nenhum botar defeito. Apresentei-lhe a Rainha. E naquela noite, na suíte real do Arpoador, no hotel de milhares de estrelas, teve uma festa. No dia seguinte, eu era um recheio de um maravilhoso sanduíche, entre as duas. 
O posto 6 em Copacabana era o que mais a gente freqüentava. Uma mistura de 
tudo: maconheiro, cheirador, traficante, bicha, sapatão, gente boa, gente ruim, turista, a verdadeira salada russa do Rio de Janeiro. E todos se cruzavam na famosa estrela, a Galeria Alaska, que só no nome era fria.
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Boquinha quente... 
Formamos uma pequena cooperativa: nós três batalhávamos na Atlântica. Comíamos bem, dentro do possível. Dormíamos num hotelzinho da Lapa. E lá fazíamos nossas higienes, de corpo e roupa. Mas não deixávamos as mochilas, elas sempre ficavam com a gente. Na hora de dormir, haja coração. Mas era um sacrificio que não me incomodava. 
A Rainha era a encarregada de arranjar o fumo, conhecia a rapaziada. E o Rodolfo Valentino, onde diabos teria se metido? 
No mínimo, estava preso. 
Às vezes íamos batalhar em Ipanema. Um bairro cheio de burguesice, de frescurinhas. Preferíamos mesmo a avenida Atlântica. Havia mais mochileiros, malucos, gente como nós. Sentia-mo-nos em casa na avenida. Era melhor do que freqüentar ambiente de burguês metido a cagar cheiroso. Bastava esses tipinhos ouvirem um grito mais alto, para gritarem socorro mamãe! Uns filhinhos de mamãe que, se estivessem na nossa pele, já teriam virado bibelô de bicha há muito tempo... 
Estávamos sentados em bancos de pedra, ao lado de um barzinho com mesinhas no calçadão, quando um cara numa mesinha fez sinal nos convidando a tomar um gole. 
Evidente que estava a fim de uma das gatas. Mas tudo bem, na lei da rua o lance é se dar bem. Se o otário estava a fim de pagar uns chopes, não havia mal algum. 
— E aí, compadre, tudo bem? — perguntei. 
— Tudo bem. Sentem, querem tomar alguma coisa? 
Ele era do tipo burguesinho. Roupinha da moda, sapatinho combinando, tudo certinho. 
— Eu quero um chope! — respondeu Rainha, com aquela voz rouca, que dava um tesão... 
— Eu também — disse Taninha. 
— Vou nessa também. 
— Garçom... mais três chopes. Vocês são de onde?
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— Eu sou de Macaé, eles são do Sul. 
— Conheço Macaé. E vocês... são gaúchos? 
— Por que vocês aqui no Rio acham que quem é do Sul tem que ser gaúcho? - exclamei meio irado. Pois essa história de pensar que todo sulista é gaucho é uma tremenda falta de respeito com os outros estados do Sul. Eu me orgulho de ser paranaense... e detesto ser chamado de gaúcho! 
— É que o gaucho é mais popular 
— Que nada! xará... é falta de estudar o mapa do Brasil. Nós somos paranaenses. 
— E com muito orgulho 
— Valeu, Taninha! — bati em suas costas. 
— Já vi que dei uma mancada. Eu gostaria de conhecer o Sul. Deve ser muito bonito. 
— É lindo! — concordou Taninha. 
Os chopes chegaram. Ninguém se olhou, não atacamos, demolimos. Um gole e reduzimos os copos quase ao fundo. 
— Puxa... vocês estão com sede! 
— Faz uma cara que não tomo um chopinho, tava seco - lambendo a espuma, respondi. 
— Meu nome é Luís Carlos, e o de vocês? 
— Vera... 
— Tânia... 
- Austry 
— Vocês estão com fome? 
— Estamos. A gente só rangou pela manhã — respondeu Rainha. 
— Eu moro ali no Catumbi. Moro sozinho, se vocês tiverem fim de ir até lá, a gente prepara alguma coisa pra comer... 
O cara parecia gente boa. Mas, sem dúvida, o que ele queria era transar com uma das garotas. 
— Aí, cara, a gente tá com fome sim! Tem muitos dias que a gente não sabe o que é estar dentro de uma baia. Nós podíamos aceitar o seu convite. Mas chegando lá, você vai querer cobrar, obrigando uma das garotas a trepar com você.
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E aí, compadre, não vai ser legal pra ninguém. Jogo limpo é o meu lema! 
— Qual é o seu signo, Austry? 
— Touro. Não sei o que tem a ver... 
— Você é bastante direto, é próprio dos taurinos. Vocês não me conhecem. Não sou de obrigar ninguém a fazer o que não quer. E eu estou convidando vocês três. É mais fácil vocês fazerem alguma coisa comigo... do que eu com vocês. O cara se saiu bem. Não sei se estava com ciúmes das garotas. 
— É, eu acho que tá tudo bem — disse Rainha. 
— É! — concordou Tânia. 
— Tudo bem, mas vamos tomar mais uns chopes... 
Ele morava num apartamento muito gostoso. Tinha dois quartos e tudo o mais. Fui logo pedindo licença para tomar um banho. Água quentinha, que delícia! Nos hoteizinhos, só havia água gelada. Ele me emprestou uma camisa, pois minha roupa ficou sem condições de uso depois do belo banho. Os brotos aproveitaram para tomar banho e lavar algumas das nossas roupas. Ele também deu camisetas para elas. Ficaram sexy só de camisetas e calcinhas. 
O cara era gente boa. Comemos, jogamos cartas, apresentamos o fininho, ele deu umas bolas. Criou-se um clima, nós quatro parecíamos muito unidos. Enquanto as garotas davam um jeito na cozinha, nós papeávamos na sala. 
— Você faz o quê? 
— Só estudo, meu pai me sustenta. 
— É uma boa, eu também só estudo. Meus velhos me agüentam. Não sou o que se pode chamar de filhinho de papai... 
— Mas é melhor assim, Austry. Você recebendo tudo na mão, como é o meu caso... dá urna sensação de impotência, uma insegurança. Você não faz nada por si mesmo. Cria-se uma dependência difícil de se desfazer e um receio do futuro. 
— É, deve dar.
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- Quantos anos você tem, Austry? 
— Fiz dezessete, em maio. 
— Mas você tem cabeça de mais idade. Eu tô com vinte anos e estou achando que não tenho a sua experiência de vida. 
— Não sei por que você diz isso... 
— Pela sua independência. Vir para o Rio sem conhecer ninguém e ficar tanto tempo. Não é qualquer um que tem esse pique. 
— Eu vim com um amigo. 
— Amigo que o deixou no mesmo dia em que vocês chegaram... isso não é amigo, é um safado! 
— Você tem razão. Mas se não fosse o convite dele, eu não teria me arriscado numa aventura dessas. 
— Mas se invejo você é justamente por isso. Se acontecesse comigo, eu já teria telefonado pra minha família e voltado pra casa. Não teria a sua coragem de ficar sem grana numa cidade desconhecida e perigosa como o Rio de Janeiro. 
— Eu não acho que o Rio seja assim tão violento como algumas manchetes publicam. 
— Mas é. O Rio há muitos anos tem um índice de criminalidade alto. 
— Mas eu não sou o único nessa situação, as garotas também estão na mesma. 
— Tenho inveja delas também. Vocês estão curtindo sem saber se irão comer amanhã, onde irão dormir, na areia ou sei lá onde. Esse tipo de situação assusta não só a mim, mas a muita gente. E talvez por isso vocês sejam tão perseguidos pelas autoridades. Vocês estão mostrando um jeito livre de viver que agride os princípios de uma sociedade materialista e conservadora. Vocês são uma ameaça aos valores dessas pessoas. 
— Eu é que digo. Esses burguesinhos até desviam da gente na rua. Como se fôssemos uma agressão aos seus olhos. 
— E são. Eles representam não eles mesmos, e sim os valores familiares. Eu também. Se eu deixar o cabelo crescer e começar a falar gíria, o meu pai tem um enfarte.
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Eles são muito radicais para aceitarem uma transformação de valores tão violenta como a que está ocorrendo nos últimos anos. E a única saída que essas pessoas enxergam é a represália, através do autoritarismo em que o país vive. Mas vocês cabeludos, porras-loucas... desafiam esse poder e pagam com sofrimento essa ousadia. 
— Cara! você tá falando uma coisa que tem muito a ver. Quando um de nós cai nessas delegacias, a barra fica pesada. Fazem o que querem com a gente lá dentro. Graças a Deus eu não passei por essa... ainda não. E se prenderem a gente com fumo, então! Você apanha até pelo cabelo. Torturam até com choque nos colhões. Dizem que você dedura até a mãe! 
— A polícia neste país sempre foi covarde, e sempre será. Se o cara já está preso, ser torturado ainda por cima é uma tremenda de uma covardia. Então, matem de uma vez. Acho que é mais honesto. 
— E não importa se é mulher, não. Essas delegacias são verdadeiras casas de terror. Tortura corre solta dentro delas — falou Rainha, entrando no papo. 
— Lá em Curitiba, eu acho que a polícia é mais violenta que aqui no Rio — disse 
Taninha. 
— É dificil de saber. Mas creio que deveria ser proibida a tortura em todo o Brasil, por parte das autoridades. Então, que aprovassem a pena de morte para os que cometessem crimes bárbaros, e pronto! Agora, por causa de um baseadinho... darem afogamento, choque e outros tipos de tortura, isso é ser irracional — continuou Rainha. 
— Mas é a única maneira de combater as drogas que eles enxergam — falou Luís 
Carlos. 
— Combater as drogas! Se eles vendem em farmácias, abertamente, as piores drogas! Essas bolas, química pura, que estouram o estômago e... sei lá o quê. Fazem dez vezes mais mal que a maconha, que é uma erva natural. Tá certo que a coca, essa é pesada — argumentou Rainha, se empolgando com o papo.
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— É pesada por sofrer também um processo químico. Na Bolívia, os nativos mascam a folha da coca para ter forças para subir as montanhas, onde estão seus vilarejos. O que deixa a coca violenta é justamente o processo que ela sofre. Se fosse consumida ao natural talvez nem viciasse — disse Rainha, dando uma aula. 
— Não sei, não tenho conhecimento suficiente para debater com você. Mas acho que você tem razão — disse Luís Carlos. 
— Que tal a gente ir assistir à televisão? — sugeri. 
Fomos para o quarto assistir à TV. Tânia não saía do meu lado. Sentiu que o cara estava a fim dela. Ele não era nenhum Alain Delon, mas também não era um cara feio. Eu e as duas nos empoleiramos na cama do anfitrião. Ele sentou-se no chão acarpetado do quarto e ligou a TV. 
— Tânia, senta aqui ao meu lado. 
— Não, aqui tá legal — falou como se já estivesse esperando o convite. Rimos. 
Instantes depois, Tânia foi para junto dele. Eu e a Rainha acabamos dormindo. Acordei com gritos: Café na mesa! Por um segundo pensei que estava em casa, o que me trouxe ao real. O mês de julho acabava na próxima semana, minha pequena aventura estava terminando. E meus estudos eram o que realmente importava na minha grande vida. O terceirão nesse semestre ia ser mais puxado: preparar-se para o vestiba... Atingir meu objetivo: fazer Comunicação. Vou ser um dos melhores jornalistas que este país já teve, sonhava. 
— Hoje, que dia é do mês? 
— Dia 23 de julho. Amanhã é a Independência dos Estados Unidos — respondeu com um sorriso Luís Carlos. Tudo indicava que a noite fora satisfatória. 
— A Independência dos States não é 4 de julho? — perguntou Rainha, tentando me impressionar. 
— Deve ser. Para mim foi ontem — respondi. — Semana que vem, adeus Rio! Vestiba este ano.

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— O café tá bom? — perguntou Rainha me dando um beijo. 
— Delícia. Já dá pra casá. 
— Vestiba é duro. Não se pode brincar. Se você quiser ter uma chance tem que se empenhar — disse Luís. 
— É, cara!... estudar, ter um diploma, um nome respeitado, e ser um frustrado. Rimou!  Brinquei. 
— Mas você fez uma brincadeira com algo a que muitos ainda dão o maior valor... O nome da família, o sobrenome... enfim, o pedigree da figura... é o que importa — falou Rainha, com uma certa revolta. 
— É, às vezes nós, os racionais, nos identificamos com os animais! — Eu estava 
para gozação. 
— Lá em Curitiba, o pessoal valoriza o pedigree. Se você vem de uma família de posses, todo mundo puxa o saco e é seu amigo. Mas se não tiver posses, te chamam de pé-de-chinelo e nem te olham na cara — afirmou Tânia, revoltada. 
— Pé-de-chinelo!... que termo mais ridículo — comentou Rainha e riram, os outros, não eu e Taninha, que já conhecíamos o termo. 
— Eu também acho um terminho ridículo. Mas pessoas tapadas têm uma mentalidade ridícula. São uns frustrados que colocam sua segurança pessoal na grana que têm no bolso, acima de qualquer senso humanitário — filosofou Luís Carlos. 
— Mas o interesse existe em todos os lugares. Tapados materialistas que procuram apenas vantagens. 
— Infelizmente, Rainha tem razão... 
— É, mas em Curitiba é demais. Lá, se você não estiver bem vestidinha, dentro da moda, os caras nem olham e as amigas desviam de você na rua! — disse Taninha. 
— Mas isso é transa de cidadezinha de interior.., onde assistem à novela das oito e todo mundo sai pra comprar as roupas que viram na novela. Isso é transa de caipira. Onde moro é assim! — falou Rainha. 
— Mas a mentalidade de Curitiba ainda é de caipira mesmo.
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Vivem valorizando o que é de fora, principalmente do eixão Rio-São Paulo. Não valorizam nem os artistas locais. E essa mentalidade ainda vai durar muitos anos... 
— Eu não acredito que na capital de um Estado mais rico que o nosso, que as pessoas ficam iguais a macaquinhos... imitando! Acho que vocês estão exagerando. O Paraná deve ter sua própria cultura e personalidade — afirmou Luís. 
— Tem, mas não é cultivada, e sim, desvalorizada. Imitam, como macaquinhos, sim... até programas locais de TV imitam os programas do Rio e de São Paulo. Acham uma gorda pra imitar a Wilza Carla e colocam como jurada... outro, imita outro jurado... Num mau gosto que dá dó! E lá há talentos para ensinar o que é arte. Só que as panelinhas que dominam os meios de comunicação não dão chance. 
— Como é que você sabe disso, Austry? 
— No colégio onde estudo nós temos uma escolinha de arte. E também transamos teatro. A reclamação é só uma: a desvalorização do talento paranaense. Lojas e firmas contratam atores de outros estados até pra anunciar um chinelo. E os artistas locais raramente são vistos como artistas. 
— Puxa, eu que tinha idéia totalmente diferente do Sul. O que se fala por aqui é que lá as oportunidades de estudo e emprego são boas. 
— Quanto aos estudos e empregos, concordo. Mas em matéria de cultura e de arte, as oportunidades são pequenas. Não há incentivos econômicos e, o mais importante, o reconhecimento da própria população. Estou falando o que eu tenho escutado dos atores e artistas que conheci. E também da minha professora de Teatro, que é uma grande atriz. 
— Mas o povo que não valoriza seus artistas, sua arte e, principalmente, sua cultura é um povo fraco e sem personalidade — disse Luís. 
— Você disse tudo. E naquele ditado de que “santo de casa não faz milagre”, eu acrescentaria o seguinte: na casa de tapados santo nenhum é milagroso! — falou a Rainha.
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— A situação de desvalorização e anonimato em que vive o talento paranaense é revoltante. Muitos abandonam o Paraná e vêm em busca de uma deixa aqui no Rio ou em São Paulo. Comem o pão que o diabo amassou e jogou fora. Tudo pela arte... 
— Mas o que falta para que esse pessoal possa mostrar seus trabalhos? 
— Falta tudo. Não temos uma gravadora de força nacional. Não temos um canal de televisão com força nacional. Não temos nem uma editora de livros respeitável, com força de competição. Falta realmente tudo no setor artístico e cultural. 
O papo ainda rolou muito sobre a cultura e a arte no Paraná. Naquela época, não poderia imaginar que essas dificuldades perdurariam por tantos anos. 
Combinamos que voltaríamos à noite. Fomos à praia. Já no fim da tarde, o bronze incomodava. Começamos a batalha na Atlântica. Esse tipo de atividade faz desenvolver uma certa sensibilidade: a gente começa a perceber, de antemão, qual a pessoa que será solidária ou aquela que certamente irá mandá-lo trabalhar. Estávamos tão profissionais que, em poucos minutos, tínhamos o suficiente para o jantar, o cigarro e, se quiséssemos, até dormir num hotelzinho. 
Era tudo o que necessitávamos para o momento. E resolvemos curtir um pouco. Os bares repletos de gente bonita, a maioria bronzeada, turistas do mundo todo. Abertos a tudo, alegres. Sempre sobrava distração. Tudo aquilo criou um fascínio em mim pela cidade, que realmente merece o título que tem. Era simplesmente maravilhoso... 
A noite já ia adulta. Estávamos nas proximidades da Galeria Alaska quando, num repente... o tempo fechou, tudo escureceu e o mau cheiro tomou conta do lugar. Os ratos chegaram como se tivesse estourado a terceira guerra mundial — com armas em 
punho, metranca, gritos e pancadas em alguns cabeludos. E, é claro, sobrou para nós também.
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— Cadê os documentos? carteira de trabalho? rapidinho! 
— O filho-da-mãe já sabia que não tínhamos tais instrumentos. 
— Nós somos menores. E não somos daqui, seu Policial... — disse com respeito, temendo a falta de gentileza de tão dignificante representante da Lei. 
— Papo furado! vocês são vadios... — classificou-nos de acordo com os preconceitos morais e íntegros da nossa sociedade. 
— Não somos vadios não, cara! Somos estudantes! — falou a Rainha, com toda sua nobreza plebéia. 
— Cara é a puta que te pariu, sua maconheira vagabunda... Cadê a carteira de estudante? — gritava o grande homem, com arma em punho. 
Mais do que depressa começamos a procurar em nossas mochilas as ditas cujas. O grande homem já estava ficando impaciente. E o bom senso mandava não contrariá-lo. Cadê essa desgraçada? Só a tinha mostrado para porteiros de cinema, com a data de nascimento alterada. E agora necessitava dela, e ela nada de aparecer. Nem a minha e nem as das garotas... 
— Todo mundo pro camburão! — ordenou o grande homem. “Vamos logo, porra!”, gritava, empurrando. 
Fomos escoltados por dois outros super-homens. Para dentro do camburão lotado de mochileiros. Fomos parar a umas quatro quadras de onde nos pegaram. 
Os exemplares funcionários públicos responsáveis pelo alto índice de segurança em nosso país fizeram o seu papel, mostraram que fazem jus aos impostos que os cidadãos pagam para ter segurança. Deram um show cinematográfico em plena avenida Atlântica. Prenderam um bando de adolescentes, sujos e malvestidos. Certamente algum turista deve ter se impressionado com a eficiência da polícia brasileira. Esse turista deveria ser, no mínimo, um ignorante paraguaio. Éramos, sem dúvida, uma agressão aos olhos dos senhores de família.
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Na delegacia, começaram as difamações em forma de entrevista. 
— Cadê o fumo? — pergunta um dos funcionários públicos, pago pelos meus pais. 
— Que fumo, delegado? A gente não é disso não... — disse Rainha, olhando para cima, O funcionário de meu pai estava sentado atrás de uma mesa, em cima de um tablado. Tínhamos que olhar para cima. Aquilo, sem dúvida, era para lhe dar um ar de superioridade. 
— Deixe de papo furado, garota! Não encontraram nada com esses três? — perguntou 
a um outro funcionário do meu pai. 
— Tá legal! seus vagabundos. Deram sorte de não caírem com nada em cima, senão a 
história seria outra. Mas estão vadiando. Encarcere os três! Tragam os outros — falou o empregadinho convencido. 
Levaram-nos para as celas. Eram separadas uma das outras por paredes de tijolos, com grades somente na parte que dava para o corredor. Colocaram as duas numa cela de frente e me levaram pra uma cela sozinho, lá no fundo — a última cela. O movimento de abre e fecha cela foi noite adentro. Eu achava um absurdo tudo aquilo, pois não era nenhum criminoso para ficar ali. Não tinham pegado a gente com nada, e eu era menor. Baseando-me nisso, comecei uma algazarra. 
— Me tirem daqui! Me tirem daqui! Nós não fizemos nada. Eu quero sair daqui... Meu pai é deputado, vocês vão se ver com ele... Me tirem daqui... Porra!... Me tirem daqui, seus merdas. — Meus argumentos de nada adiantaram. Só conseguia a solidariedade da cambada que estava presa. 
— Cale a boca, seu merda! Tô querendo dormir, seu filho-da-puta... — gritavam os outros hóspedes daquela espelunca. 
— Vai tomar no cu, seu rato de cadeia! Se vai dormir, tome cuidado com o buraquinho!... — Alguns riam. Outros queriam dormir mesmo. Mas o intercâmbio cultural continuava de cela em cela.
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— Manhêee!... me tire daqui... eu não fiz nada.. manhêee! me tire daqui... — estavam me gozando. 
— Seu viado, se você estivesse aqui eu ia fazer você dormir com uma porrada no meio da cara, seu corno!... 
— Ele é valentão... manhêee! me tire daqui... manhêee!... 
Depois do alvoroço dentro do pavilhão, um gorila apareceu na porta da minha cela, dirigindo-se a mim: 
— Cala a boca, seu moleque de merda! senão eu entro aí e te encho de bolacha. 
— Enche, porra nenhuma. Sou menor! se enfiar a mão, amanhã quem tá aqui dentro é 
você, seu babaca. — Tive muita coragem ou era novato em assunto de ser encanado. 
— Você vai ver só, seu pirralho! Vou buscar a chave... 
— Aí, valentão, vão te levar pro pau-de-arara. Seu otário... babacão... — gritavam das outras celas. 
— Cale a boca, Austry! vai ser pior pra você — tentou acalmar-me a Rainha. 
— Que nada, quero sair daqui, não sou nenhum bandido! E se esse macaco vier me bater, vai ver o que o velho vai fazer com ele!... — (Papai, ah!... se você imaginasse o que eu estava armando em cima da sua cabecinha branca.) 
Num relâmpago apareceu a branca de neve. Com um balde até a boca. O filho de uma chimpanzé com um gorila deu-me um banho. E a água, no mínimo, era da latrina. O cheiro foi dificil de agüentar. 
— Seu corno... filho de uma macaca... viado! — Tentei cuspir-lhe. Desviou e saiu rindo. 
Fiquei quatro dias me acalmando. As garotas saíram no segundo dia. Só saí depois de interrogado. 
— Tá calminho?... 
— Sim, senhor... senhor Policial! 
Tinha tomado uma resolução naqueles quatro dias de meditação. Assim que abrissem aquela famigerada cela, pegaria o ônibus 128 e... Rodoviária.
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Na Rodo, batalhei rapidinho a grana da passagem. Minha mochila estava mais magra, apenas as roupas sujas. Passagem na mão, sentado esperando a hora do bus, meditava: valeu, foram férias de que jamais esquecerei. Tinha certeza de que estava indo, mas voltaria. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro conquistara mais um admirador. Iria voltar e para morar. 
Em Curitiba, tudo estava na mesma. A feira hippie aos sábados pela manhã na praça Zacarias. Um ponto de encontro do pessoal de cabeça feita. Ali se curtiam e programavam os agitos. A turma da Saldanha, que curtia uma briga com correntes, pedaços de pau, canivetes... Outra turma, famosinha por suas encrencas, era a chefiada pelo Cigano... O pessoal da pracinha do Japão também marcava presença... os da praça da Espanha... além de outras patotas violentas, que marcaram uma fase da juventude curitibana dos anos 70 e racharam muitas cabeças. 
Tudo estava na mesma. As patotinhas acabando com as festinhas nas casas dos bacanas, os papos das pessoas, o colégio e minha turma. Eu estava diferente, não esquentava mais com a roupinha bem transadinha que os jovens da minha idade tanto valorizavam. Diferente, após experimentar a verdadeira liberdade, embora por pouco tempo, quase um mês dormindo não sei onde... sem noção de horários e tempo. E o mais empolgante: ter uma cidade toda como leito. 
Sentia-me superior, autoconfiante, uma sensação gostosa de ter realizado algo diferente. Nas minhas inseguranças de adolescente, aquela experiência foi importante. 
Num fim de semana de agosto fomos novamente para Camboriú. Edson, Issan, Adão e eu. Fomos e voltamos de ônibus. Só que eu dei uma vacilada, ofereci umas bolas para uma gata dentro do ônibus. A garota nos dedurou para um coroa careca. Ao 
chegarmos na Rodoviária de Curitiba, esse coroa, recalcado e frustrado, chegou com os tiras para cima de nós. 
— São esses aí! Os quatro estão todos maconhados e ofereceram droga pra uma moça, dentro do ônibus! Esses cabeludos maloqueiros!...
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O recalque em certas pessoas é digno de pena. Esse cavalheiro dedo-duro era a imagem do verdadeiro recalcado. Careca, barrigudo, aparentando quarentão, aproveitou a chance de jogar suas frustrações em cima da gente. Tá certo que errei em oferecer aqueles comprimidos para a distinta garota que, antes do episódio, estava querendo brincar com a rola. Quando o ônibus parou, ninguém mais a viu. Percebia-se nos olhos daquele coroa o ódio que sentia por cabeludos. Talvez porque fosse careca ou porque algum cabeludo estava transando com a filha ou esposa dele. Já havia encontrado muitos coroas daquele tipo. Moralistas durante o dia, e à noite nas bocas, à caça de garotões para uma trepadinha. 
Ficamos surpresos com aquela recepção. Estávamos de cabeça feita. Mas na hora é o mesmo que ser jogado embaixo de um chuveiro de água fria. A doideira desapareceu dando lugar a uma tremedeira que não dava para controlar. Passava tudo pela cabeça da gente: pau-de-arara, porrada... e a tortura que viria depois. 
Na sala, no subsolo da Rodoviária, mandaram esvaziar todas as mochilas. Um dos guardas ia revistando. O meu receio e o de todos era o que tinha sobrado de fumo... onde estava? O Edson, antes de tirarmos as nossas jaquetas, já tinha tirado a dele. Jogou-a junto com as roupas das mochilas. O guardinha, confuso com tantas bugigangas que tínhamos tirado das mochilas, estava visivelmente perdido. 
— Posso ir ao banheiro? — perguntou Edson, pegando novamente a sua jaqueta que 
já havia sido revistada. 
— Vem cá! — chamou outro guarda, enfiando a mão no saco do Edson para revistá-lo. 
— Pode ir, é aquela porta! 
Tínhamos uma vantagem, os guardas da Rodoviária não eram os homens da Entorpecentes. Eram uns vigias, fardados de ratos.
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O Artane e o envelope de Abulemim foram encontrados. Os vigias fardados se cumprimentaram com olhares. Um deles perguntou se aquilo era boleta. 
— Não, não senhor. Esses remédios são para os nervos. 
 Fomos entregues aos homens da Entorpecentes. Levaram- nos para o seu quartel-general. Sabíamos que iríamos conhecer o famoso comandante “japonês”. 
Era conhecido por pendurar maconheiro no pau-de-arara, e ele mesmo fazer as torturas. Chegavam a dizer até que arrancavam unhas de viciados. Dormimos os quatro numa cela. Não tivemos o prazer de conhecê-lo naquela noite. Mas pela manhã fomos levados a uma sala. Lá estavam nossas mochilas todas reviradas. 
 Ficamos em pé, esperando, sem saber o quê. O rato que estava com a gente nada dizia. 
 Entrou o famigerado torturador. Encostou-se na mesa e ficou nos encarando por um bom tempo. 
— Vocês estão com sorte... com muita sorte. Há muito que estou de olho em vocês. Sei que puxam fumo. 
 Falava calmo, outros ratos chegaram. Era um japonês de meia estatura, cabelo dividido para o lado, nem gordo, nem magro. Devia ter uns trinta e poucos anos. Adão tentou argumentar. 
— Não, senhor, a gente... 
— Cala a boca! Não mandei ninguém falar! E esses remédios, de quem são? 
— São meus — respondi —, são para os nervos... 
— Deixem de palhaçada! pensam que sou trouxa? — Começou a rodar em nossa volta, encarando. — A sorte de vocês é não termos pegado nem uma baguinha com vocês. Eu 
gostaria de estar com vocês pendurados... mas a oportunidade ainda virá. 
 Issan, não sei por quê, agachou-se para arrumar um tênis que estava pendurado na mochila. Sem vacilar o grande comandante chutou-lhe o peito. Issan caiu para trás. Só aquela jaqueta preta do japonês já assustava, dava para ver o berro.
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— Levanta!... eu quero que vocês prestem atenção no que vou dizer. Estou de olho 
em vocês há muito tempo, e mais um vacilo, eu não vou ser tão bonzinho como estou sendo. Esse foto que seu pai tem, fica onde? 
— Na Saldanha Marinho. 
— Já ouvi falar de umas reuniões que vocês fazem lá. Qualquer dia eu apareço pra fazer uma visita! E agora, sumam da minha frente. — Saiu. Ficamos arrumando nossas mochilas. 
 Não deu para acreditar. A fera tinha nos soltado. Não tínha-mos o flagrante. Na 
rua, sufocados ainda, não acreditávamos estar respirando aquele ar de fim de inverno. 
— Nunca mais vou colocar um fumo na boca! — falei com decisão. 
— Eu também. Vocês viram, eles já estão de olho no foto! — disse Edson, preocupado. 
— Mas por que ele deu um toque na gente? — perguntou Adão. 
— Sei lá, mas a turma vai ter que dar um tempo no local. Já pensaram?! Se eles aparecerem de supetão... tá todo mundo fodido! — falou Issan. 
— Porra, cara!... que vacilo seu oferecer bagulho pra aquela garota... Tá parecendo loque, quer aparecer? 
— Olha, Adão, vai tomar no cu!... tá legal? 
— Que é que há, cara, quer levar umas porradas?... só você começar, que eu termino!... 
— Parem, vocês dois! já aconteceu e pronto! Tá todo mundo da turma vacilando. Até o foto, eles já sabem onde é. E se vocês querem saber, essa caída foi até uma boa. Serviu pra gente abrir o olho. Seria pior uma batida no foto! — argumentou Issan. 
— Cara! valeu a sua dispensada do bagulho lá na Rodo... — disse Adão, puxando o 
saco. 
— Demos sorte. Se eles dão a geral na hora que estávamos pegando as mochilas do 
bagageiro do ônibus, tinham achado a maconha.
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Enquanto a gente descia pra sala da Rodo, eu empurrei o fumo num buraco do bolso da jaqueta e fui empurrando em direção ao meio do forro. Por isso, aqueles guardinhas não encontraram... foi pura sorte. Depois, dispensei a coisa no banheiro. 
— Cara, se encontram aquele fumo, a gente tinha sido pendurado... 
 O conceito que as pessoas fazem do usuário da maconha nos ficou evidente: é o 
mesmo que um ladrão, um assassino. Eu nunca tinha caído numa especializada, tomei noção de que o que fazíamos era muito sério. Ele só nos deu um toque porque o Edson e o Issan eram japoneses. Embora o único menor fosse eu, fiquei muito impressionado com o delegado. Os Outros também. 
 Se tivessem encontrado maconha, sem dúvida eles nos teriam pendurado no 
pau-de-arara, fôssemos ou não menores. E através da tortura do usuário de maconha que eles chegam aos pequenos traficantes. A tortura é violenta. No afogamento, enfiam a cabeça da vítima dentro de vasos sanitários cheios de fezes. Amarram os punhos cruzados com os tornozelos, enfiam um pedaço de pau entre eles e levantam o corpo. Deixando a pessoa pendurada como um frango. Esse é o famoso pau-de-arara. Começam a bater com pedaços de pau nas juntas e nos ossos dos tornozelos, nas solas dos pés, nas costas, deixam apenas uns vermelhões na pele, mas por dentro se está todo quebrado. Choque nos colhões, a tortura é cruel. 
 Os anos 70 foram também marcados pela tortura da polícia brasileira. Barbarizavam, pois o famigerado AI-5 lhes garantia essas atividades. Torturavam, desapareciam com pessoas, tudo em nome da Lei, chegando ao ponto das atitudes desses carrascos ultrapassarem as barreiras nacionais. Os jovens, os cabeludos maconheiros, como éramos denominados por uma sociedade dirigida a pensar como os ditadores desejavam, eram alvo de todas as atenções. Os dirigentes-ditadores, inteligentemente, desviavam a atenção da sociedade em nossa direção.
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Enchiam os jornais de manchetes como “Maconheiro cabeludo estupra menor”, “Maconheiros cabeludos assaltam para comprar drogas”... e outras manchetes desse gênero. Criavam na população aversão a qualquer jovem que usasse cabelos compridos. Fomos assim perseguidos não só por policiais, mas também discriminados e repudiados até por nossos familiares. 
 A aversão aos cabeludos era tão forte que, às vezes, éramos agredidos, provocados e humilhados pelas pessoas. Era a política autoritária e desonesta praticada nos anos da ditadura. Mas até o ano de 1978 nós, os cabeludos, seguramos as neuroses de uma sociedade pisoteada e carente de liberdade. Foi através de nossos cabelos compridos e rebeldias que conscientizamos o povo de seu valor e introduzimos idéias de mudanças. Essas idéias dos cabeludos, gritadas em músicas, em slogans de amor desde os anos 60, venciam mais uma vez as armas, as torturas e os canhões. Pois foi durante os quinze anos do famigerado AI-5 que nós, cabeludos maconheiros, lutamos e nos rebelamos contra esse artigo mesquinho, que tantas vítimas fez. Foram quinze anos de tortura e sangue, sendo que a maior parcela fomos nós, os jovens cabeludos maconheiros, que pagamos à sociedade livre, mas não justa, de hoje. 
 Deixamos de nos encontrar no foto por um bom tempo. Cruzávamos nos barzinhos e pimbolins. Mas eu jamais imaginaria o que me aguardava...
Capítulo 2
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JAMAIS SONHARIA AONDE OS caminhos da minha adolescência me levariam. Algo que supus acontecer apenas em filmes americanos de terror aconteceu. Em meados de outubro de 1974, chegando em casa, fui convidado por meu pai a acompanhá-lo em visita a um amigo seu, hospitalizado. Estranhei aquele convite, pois não tínhamos o hábito de sair juntos, mas fui. 
 Chegando ao hospital, antes mesmo de entrarmos nas instalações de imediato dois enfermeiros vieram ao nosso encontro. Com sorrisos, postaram-se um de cada lado. 
Desconfiei daquela posição. Pegaram em meus braços. 
— Ei! péra aí... o que está acontecendo? — perguntei assustado e olhando para meu pai. 
— Calma, filho, é para o seu bem! — respondeu meu pai. 
— Seu pai o trouxe aqui pra você fazer uns exames, apenas isso... — falou um enfermeiro negro. 
— Mas que exame, pai? eu não estou doente... — perguntei, forçando para soltarem os meus braços. 
— Calma, filho! é para o seu bem... 
— Que calma? eles estão me puxando... qual é, velho? 
— Nós sabemos que você não está doente. Ele só quer que você faça uns exames e mais nada... — disse, tentando me acalmar, o enfermeiro negro. Puxaram-me para dentro de um pavilhão. 
 
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— Ei!... espere aí, meu pai não vai entrar? — falei e vi a porta atrás de mim fechar-se. 
— Venha comigo! — disse o negro. Largaram os meus braços. 
 Caminhamos por um corredor. Do lado direito ficavam quartos, do lado esquerdo, uma sala não muito grande com mesas e cadeiras. Entramos num quarto logo ao lado da sala. Era um quarto que usavam como enfermaria. Sentaram-me numa cama alta. Havia um pequeno armário com vidro e um suporte para braço. O enfermeiro negro 
sentou-se ao meu lado na cama, o outro sentou-se a uma mesinha de enfermagem. 
— Como é o seu nome? — perguntou o enfermeiro negro. 
- Austry. 
— Bem, Austry, o que na realidade está acontecendo é o seguinte... — Fez uma pausa. — Seu pai encontrou maconha numa jaqueta sua. Ele acha que você é viciado e trouxe-o aqui para fazer tratamento. 
— Não acredito. Meu velho pensa que sou viciado? Ele nem conversou comigo e já me 
trouxe pra cá?!... 
— E o fumo, você fuma maconha? — o negro. 
— Dou meus peguinhas, mas isso não significa que seja viciado. 
— Bom, só sei que seu pai o internou e a gente vai tratar de você. 
— Tratar de mim? Isso é uma piada. Eu não sou um viciado, podem fazer o exame que quiserem. Não sou dependente de droga nenhuma. Vamos, façam os exames! Podem fazer qualquer tipo de exame, vocês verão que não tenho dependência nenhuma... 
Isso é, se vocês forem capazes de entender o que é ser um viciado! Cara! tô afirmando pra vocês: eu não sou nenhum dependente! Então, que tratamento vocês vão fazer? 
— Todos os viciados que passam por aqui começaram com a maconha e as bolas. E 
agora estão nos picos. 
— Problema deles. Pico não é o meu caso e nunca será. Podem olhar meus canos, não tenho uma marca. Se eu tomasse pico, tá certo, vocês podiam me classificar como viciado, dependente, caso eu não passasse sem uma picada.
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Mas maconha... maconha faz menos mal que o cigarro comum. 
— É o que você diz. Os estudos médicos dizem outra coisa. Agora vou lhe aplicar uma injeção e você vai dormir um pouco. Não precisa ficar com medo! Meu nome é Marcelo — disse o enfermeiro negro. 
 Que medo! eu não acreditava, era um pesadelo... Só podia ser um pesadelo — eu, internado para fazer tratamento por fumar maconha... Se eu tomasse pico, cocaína, tá certo. Mas eu não tomava, mal tinha cheirado uma ou duas vezes. Só porque fumava maconha?... As vezes eu passava semanas sem colocar um fininho na boca. Qual é? Maconha não vicia ninguém, e quem disser o contrário, eu desafio a provar que maconha vicia. 
 Preparada a injeção... uma cavala! Braço no suporte, palmadinhas para despertar a veia, e a picada. 
— Cara, não tem nada a ver esse internamento... Eu não... vou... fi... — E não vi mais nada. Acordei no dia seguinte, tentava raciocinar... tonto pelo efeito da injeção! Estava num quarto cinza-claro. Um pijama azul de bolinhas. Não era meu. Levantei, fui até a porta. Ao abri-la, dei de cara com um pessoal sentado às mesas, tomando café. Todos me olharam, uma nova atração. Queria ir ao banheiro, meu pênis estava duro, fato que chamou mais a atenção de todos. 
Encabulado, tentei esconder o meu estado. Perguntei onde era o banheiro, um cara 
com ar de gozação informou. 
 O pavilhão era grande como um barracão. Lá estava a sala com as mesas, em frente ao quarto em que eu dormira. Caminhando em direção ao fundo do pavilhão, havia um corredor com quartos dos dois lados e mais uma sala grande com mesas compridas, como as de festas de igreja. Passando essa segunda grande sala, havia um corredor com mais quartos de cada lado. As portas dos quartos tinham uma pequena abertura em horizontal, que permitiam ver o interior. O banheiro era do tamanho dos quartos, com vaso e chuveiro, uma pia de rosto e um pequeno espelho na parede.
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 Tomei café, sem importar-me com os outros que ali estavam. Estava querendo entender a fria em que me encontrava. Matutava com meus botões. Sentia os olhares, querendo interrogar. Fui o último a levantar da mesa. Os outros tinham ido para o fundo do pavilhão. Após aquele café com cevada e pão, fui levado a outra sala, a das mesas grandes. O enfermeiro abriu uma porta e mandou-me sair. 
 Saí para um pátio de uns 20 por 20 metros, cercado por um muro de uns 5 metros de altura. Vi outros internos, que não estavam às mesas, em frente ao meu quarto. Mais pareciam mendigos maltrapilhos. Ficavam isolados dos outros num canto próximo aos banheiros do pátio. Nesse canto havia um telhadinho, parecendo uma churrasqueira de parque. Aquele grupo estranho ali ficava. No meio do pátio havia um pouco de grama, onde alguns deitavam-se. Encostei num canto do muro branco, observando aquele cenário de filme de terror. 
 O que mais me chamava a atenção era aquele grupo, no canto coberto... tinha um sujeito enorme, forte, meio gordo ou inchado, com um corte de cabelo estilo militar. Não parava de balançar a mão direita e virava a cabeça de um lado para outro. Era uma figura assustadora. Outro sujeito corria de um canto para o outro, soltando um tipo de grunhido. Havia alguns com as calças molhadas e sujas, devia ser urina e fezes. Um outro escorregava andando com o corpo e o rosto encostados na parede, parecendo querer entrar, fazer parte daquela parede, esconder-se de todo, misturar-se com o concreto. 
 Era uma visão triste: aquelas pessoas reduzidas àquilo. Eram pessoas sim, seres humanos, mas pareciam feras torturadas, agoniadas, com alguma coisa mordendo seus corpos e rasgando-lhes também a alma. 
 Os que haviam tomado café comigo pareciam normais e não estavam em farrapos, como aqueles lá do canto. Havia outros malvestidos ou sujos, esparramados na pouca grama.
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Mas os daquele canto eram diferentes, pareciam a degradação de uma sobrevivente de uma guerra nuclear. O desespero em seus bares, o medo em seus atos... a individualidade em suas fantasias, apenas quebradas por algum ato de violência de um para com o outro. 
 quele canto era qualquer coisa diabólica. Como se o demônio tivesse o comando de suas mentes, nelas derramando sua ira e divertindo-se em atormentá-los. Aquilo era satânico: pessoas urinadas, defecadas, revirando os olhos, cabeças, querendo entrar dentro do concreto. Todo aquele tormento só podia ser comparado ao inferno. Se ele realmente existe, sem úvida eu estava vendo um pedacinho dele, ali naquele canto, o canto dos malditos... 
 O conceito geral daquele pátio é uma grande jaula, onde as s ficavam, umas deitadas, outras sentadas em diversos lugares, olhares perdidos horas e horas, olhando não se sabia para onde. Todos mantidos escondidos, como animais contaminados e deviam ser trancados em algum lugar. E o lugar era aquele pátio. Não sabia o que fazer... tudo ao meu redor, não! não esta acontecendo, era um pesadelo, meu Deus! Aquelas pessoas não eram reais... eu tinha que acordar!... A angústia começou a tomar conta de mim... eu não estava ali, eu não queria ficar ali! meu Deus, que lugar era esse?! 
— Ei! você é o enfermeiro? 
— Sou. — Respondeu, com um livro na mão, roupas comuns sentado numa cadeira, 
perto da porta que dava acesso ao interior do pavilhão. 
— Olha, eu não estou entendendo nada. Ontem eu falei com um outro enfermeiro, não falei com médico nenhum, não sei o que estou fazendo aqui dentro. Quero ir embora! — gritei desesperado. 
— Você vai falar com o médico. Daqui a pouco ele vai chegar, fale com ele — disse sem dar a mínima.
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 Agoniado, fiquei rodando pelo pátio. Não ousava chegar perto daquele canto. 
Remoia-me: quando ele chegar, eu explico — não sou viciado, não tenho necessidade de drogas. O senhor pode fazer os exames que quiser! Foi um equívoco de meu pai. Eu não preciso ficar aqui dentro, rodeado por pessoas horríveis. 
 Quando o médico chegou, meu coração disparou. Dependia dele continuar naquele lugar pavoroso... dependia exclusivamente de mim mostrar a ele que eu era uma 
pessoa normal. Ao entrar no pátio foi imediatamente cercado pelos internos que haviam tomado café em frente ao quarto onde eu dormira. Os do canto nem tomaram conhecimento do ilustre personagem. Aproximei-me. O enfermeiro do pátio falou alguma coisa ao seu ouvido e ele me olhou. Estendi-lhe a mão em cumprimento. 
Tocou apenas nas pontas dos meus dedos como se eu fosse contaminá-lo. Disse-lhe que queria falar-lhe. Abanou a cabeça positivamente, entreteve-se em seguida com o grupo ao seu redor e, rapidamente, saiu do pátio. 
— Enfermeiro, eu quero falar com o médico. 
— Se precisar, ele chama! 
— Como assim? Eu quero falar com ele. Não é se ele precisar! Eu quero falar com ele. Ele não pode simplesmente me deixar preso aqui dentro. Eu exijo falar com ele. 
— Aqui dentro, você não exige nada! E se precisar, ele manda busca-lo — respondeu, já. 
— Então, eu quero falar com meu pai! 
A sua família você só verá daqui a quinze dias. 
— Quê, quinze dias? Eu não vou ficar aqui dentro todo esse tempo, não, de jeito nenhum. 
— Olha, coloca na sua cabeça que você está internado, esse é o fato. Você está em tratamento. 
— Tratamento de quê? Vocês simplesmente me prenderam aqui dentro. Ninguém veio 
me examinar pra ver se sou ou não um viciado. O médico chega aqui, dá uma olhada geral em todo mundo e sai. Qual é, que lance é esse?!
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— Cara, eu não tenho que lhe dar explicação nenhuma. E é melhor você ficar calmo para o seu próprio bem — continuou nervoso com minha insistência. 
 Não adiantava, O cara era radical. Perguntei a ele se poderia falar com o médico 
de tarde. Só amanhã ele estará de volta! 
— respondeu seco. Que merda ficar aqui, eu não quero. Os pensamentos começavam a se atropelar em minha mente. Não conseguia coordena-los: ontem, meus estudos, vestibular, minhas aulas... é um pesadelo, meu Deus, isto não está acontecendo, não pode ser real... Estou preso ao canto dos loucos cagados, que merda! tenho dezessete anos e estou num hospício. Não é real, meu Deus! Pai... por que você fez isso comigo? Achar maconha... não sou viciado! não prova nada, ignorância sua, pai. Eu, dentro de um lugar desses... e meus estudos? Se tivéssemos conversado, pai, eu lhe provaria que não sou viciado.., não sou, pai! Não precisava me trazer para cá. Por que não conversamos, pai? Por que não conversamos, porra?! O médico nem sequer me olhou direito, vão me tratar do quê? 
Eu não quero ficar aqui. Eu vou fugir. O muro é alto demais, somos mais de vinte, seria fácil dominar aquele bundão, mais uns três e seria... Aquele cara com um gibi parece normal, talvez ele tope... 
— E aí, tudo bem? — perguntei imaginando qual seria sua reação, pois todos que estão internados eram loucos! 
— Tudo bem, senta aí! — falou com o gibi levantado para tapar o sol. 
— Tá aqui há muito tempo? 
— Dessa vez, faz cinco meses. 
— Cinco meses, aqui dentro? Como é que você agüenta? — Isso me pareceu uma 
eternidade. 
— Só penso em ir embora desse inferno! Já não dá mais pra agüentar esses internamentos. 
— Quantas vezes você já foi internado? 
—Já perdi até as contas — abaixando a cabeça. 
— Meu nome é Austry, e o seu?
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— Rogério. 
— Você tá sacudo de ficar aqui dentro, eu tô só há um dia e pouco e já não agüento. Só tem um vigia aqui no pátio, com mais uns dois a gente podia dominar o cara e pinotear daqui, em dois toques... 
— Nós só chegaríamos à parte interna do pavilhão! 
— Por quê? 
— Ele só tem a chave daquela porta. As outras chaves ficam com os outros enfermeiros. Isso aqui ficaria em pouco tempo cheio desses gorilas... é bobeira! 
— Bobeira é ficar aqui dentro! Eu não estou agüentando... 
— Cara, se acalme!... senão você vai pra Tortulina. 
— Tortulina, o que que é isso? 
— É uma injeção de Haloperidol que lhe aplicam no músculo. Você fica igual àquele cara grandão, lá no canto: babando e revirando a cabeça. A porra dessa injeção repuxa todos os nervos. É como íngua dando em vários nervos ao mesmo tempo, cara.., O efeito dessa injeção retorce todo o corpo. Dói pra diabo essa droga do capeta! Eles aplicam nos pacientes que estão exaltados, é uma forma de controlá-los, pois ficam completamente sem ação física. Por isso, se acalme de vez... senão, te levam pra enfermaria e te aplicam a droga. 
— Então!... por isso o enfermeiro falou daquele jeito... 
— Esses caras aqui dentro não querem ser incomodados. Quem os incomoda, logo eles dão um jeito do cara entrar numa por bem ou por drogas. 
— Deu pra perceber, não tem meio-termo... 
— Tem o que eles querem. Você chegou ontem, nunca esteve internado antes? 
— Nunca e até agora não aceitei que estou aqui. 
— Cara, isto aqui é pior que uma prisão de verdade. É, em muitos sentidos, tão ou mais perigoso. Essas drogas que somos obrigados a tomar são um veneno que nos mata em pouco anos.
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—Até agora só tomei uma injeção do tamanho de uma cavala e dormi até hoje. 
— Você tomou a “três por um”, como nós chamamos. Por que te internaram? 
— Meu velho pensa que sou viciado. 
—E você é? 
— Pelo que entendo, viciado é aquele que quando o organismo está sem droga, parece sentir uma sede danada. Isso é ser viciado. O meu caso era apenas uns peguinhas na maconha e umas bolas, mas não tenho dependência nenhuma. Podem fazer os exames que quiserem. 
— Cara, teu velho é um mal informado. Se ele queria evitar que você tomasse realmente drogas, ele te trouxe ao lugar mais errado do mundo, pois aqui dentro nós somos drogados diariamente. A sedação aqui é feita em massa. Tomamos mais de vinte comprimidos diários. 
— Até agora não tomei nenhum comprimido. 
— Mas não fique impaciente, aqui você come comprimidos. Nós acordamos tomando essas drogas e dormimos tomando essas drogas. 
— Esse médico... quem é? 
— Esse médico é um verdadeiro psicopata. Chama-se Dr. Alô Guimarães, catedrático 
em Psiquiatria, professor em universidades, um dos diretores deste “laboratório” chamado Sanatório Bom Retiro. Tem setenta e dois anos e se você cair na mão dele, xará, ele com certeza irá te queimar todos os chifres... 
É o maior sádico que tive o desprazer de conhecer. 
— Cara, você é fã dessa figura... O que é queimar os chifres? 
— Eletrochoque. Choque, meu irmão! 
—Já ouvi falar nesse troço, mas isso é pra louco... 
— E o que você acha que somos? Esse filho de uma cadela pesteada vive com a maquininha de eletrochoque na mão. Acho .e ele até dorme com ela. 
— Mas eu não sou louco.
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— Tá aqui dentro! Pra todo mundo lá fora você não passa de um louco... Isto aqui é um hospício, cara! E começa com esses interesseiros que dizem tratar da gente. 
— Por que você diz isso? E você tá aqui por quê? 
— Cara, estou aqui porque sou dependente. Tomo e vou continuar tomando cocaína. Esses caras aqui não curam nem bêbado. Nunca viram nem uma quina de maconha, não entendem nada sobre vício, tanto é que você está aqui dentro... Agora, no meu caso, tá certo. Eu preciso de um verdadeiro tratamento, não o que eles fazem aqui dentro. Enchem-me de barbitúricos e queimam os meus chifres com eletrochoque. Cara, que tratamento é esse? 
— Eletrochoque em viciado? 
— Por isso eu tenho certeza, se o Dr. Alô pegar a tua ficha, você vai entrar nessa na certa. 
— Como, se ele nem falou comigo ainda? 
— O que você está esperando? Que ele vá conversar contigo? Você realmente tá louco! 
— Não tô entendendo... como assim? 
— Cara, você tem visto muita televisão. Essa de divã pra você deitar e falar, só em filmes ou em clínica particular, que são uma verdadeira suíte de hotel cinco estrelas. Aqui você não passa de uma ficha, e sua entrevista, a consulta com o psiquiatra, você já fez. Foi quando ele visitou o pátio. Aquela foi a sua consulta. O tratamento vem através da tua ficha. 
— Mas que tratamento é esse? 
— É o que o teu dinheiro pode comprar. Se você tivesse grana, você estaria numa 
clínica particular. 
— Mas como um médico psiquiatra pode medicar sem, ao menos, conversar com o paciente? 
— Caiu aqui dentro, você não é mais dono de si. Fazem o que quiserem contigo, tua ficha já tá cheia de informações que teu pai preencheu. Está como viciado. Só vão examinar o teu coração e derreter os teus chifres. E foda!
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— Aí, cara, vou rodar um pouco. 
 Rogério não estava sendo nada agradável com esse papo. Ao contrário, estava me deixando cabreiro. Ele já podia ser considerado um freguês de hospício. Saía e voltava. Mas era uma fonte de informações. Verídicas? O tempo diria... 
- Cara, e os exames? Eles não vão fazer pra saber se sou dependente? 
— Exame! pra ver se você é dependente de maconha? Isso é papo furado. Não existe tal exame. E o cara que disser que é viciado em maconha, eu mando ele ir caçar marido, e dar até o zóio cego ficar rosinha. Maconha não vicia ninguém, xará. A única coisa que ela faz é deixar você fissurado pra querer entrar na onda que ela causa. Agora, se não pintar, tu toma uns conhaques e faz a cabeça do mesmo jeito. É diferente de quem é viciado em coca, não tem outra coisa que te faça a cabeça. Tem que ser somente o pó-de-anjo. Só ele acaba com a violenta fissura. É muito diferente. E as porras desses caretas não enxergam essa tremenda diferença. Pra eles tudo é viciado. 
— Como é que você tem tanta certeza? 
— Cara, teve época em que eu tinha pacotera de maconha. Fumava direto. Um baseado a cada meia hora. Cheguei a empapuçar de tanto fumar essa droga. Fiquei com uma aversão ao cheiro da maconha, que hoje me faz vomitar. Não suporto nem mais o cheiro da maldita. 
— Então a maconha não te fazia mais a cabeça, e você partiu pra drogas mais fortes, foi isso? 
— Cara, ninguém toma cocaína porque a maconha deixou ou não deixou de fazer a 
cabeça. Esse é outro papo furado, outro tabu da ignorância das pessoas que não entendem nada sobre maconha ou cocaína. Esse papo de que se começa com a maconha e depois tem que se recorrer a drogas mais fortes é pura fantasia. O lance de querer uma droga mais forte é uma questão de cabeça e conhecimento do assunto... 
— Então, por que você começou com o pico?
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— Comecei com dezesseis anos a tomar pico. Não porque alguém me obrigasse ou tenha viciado. E sim porque essa é a fase mais carente, por insegurança, por fuga, por angústia da adolescência. E também por ingenuidade e falta de real conhecimento do que é a coca e dos seus efeitos. Esses são os verdadeiros motivos que nos levam ao vício. Tudo o mais é papo furado. 
— Você falou ingenuidade. Eu comecei a fumar com quinze anos, tive oportunidade 
de tomar pico e não tomei! 
— Cara, eu tô com vinte e dois anos. Há seis anos as coisas eram diferentes. Hoje, 1974, ainda não existe em todo o Brasil um hospital especializado em tratamento de viciado. E se você quer saber, vão mais trinta anos. A ignorância sobre as drogas irá continuar, porque este país é atrasado e manipulado. O governo é o maior cúmplice do vício. De repente, o pessoal do governo não quer que o vício acabe. Não existe a liberdade de se falar abertamente sobre as drogas. 
— Mas o combate às drogas é violento. Trafica pega uma cana federal. 
— Cara, você não está entendendo o que eu estou dizendo! Quanto mais mistérios fizerem sobre as drogas mais o baseado se torna uma coisa misteriosa e sedutora. E o pico de cocaína, o êxtase dos êxtases. E as grandes manchetes sobre apreensão de drogas mais admiradores atraem, e mais trafica na área criam. 
— Então, como e o que fazer? 
— Conscientizar os jovens. É aquele lance. Vou falar sobre cocaína, que é o que realmente vicia. Quem tá dentro quer sair e quem tá fora, por curiosidade e falta de conhecimento dos efeitos da cocaína, quer entrar. Por acaso você sabia que a maioria dos bolivianos que transam com cocaína não tomam pico? Porque eles conhecem o efeito da droga. Cheiram de vez em quando, mas nunca colocam nas veias. Eles conhecem os efeitos da droga. O que não acontece com a nossa juventude, que se empolga simplesmente pelo barato que ela causa. O fabricante boliviano ensina até às crianças os efeitos da cocaína, mostra os efeitos.
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E isso que se tem que fazer... 
— Concordo com você. Eu só não tomei umas picadas porque tive medo. Conheci uma 
mochileira da Bahia. A gata só tinha as duas presas na boca: a coca já tinha feito cair todos os dentes dela. Só sobraram as duas presas. Ela só tinha dezoito anos. E os braços eram uma ferida só. 
— É por aí... Tire uma foto da boca dela, faça uns outdoors e espalhe pela cidade com letreiros assim: “TOME COCAÍNA, ENCOMENDE SUA DENTADURA.” Esse seria 
o verdadeiro combate às drogas. Talvez alguém tenha essa idéia, também mostrando os braços. 
 Rimos. Mas o Rogério tinha razão. Para muitos da minha idade a empolgação diminuiria com certeza. Eu, se fosse presidente, faria isso: liberaria a maconha e faria os outdoors. 
— Concordo com você. Liberar a maconha e fazer os outdoors. 
— Pensando só em você! Maconha é o mesmo que o fumo de cigarro comum, os efeitos são os mesmos ao longo do tempo ou até maiores para quem fuma cigarros comuns. Essas pessoas têm mais facilidades de ficar com certas doenças do que os que não fumam. 
— Isso deveria aparecer na televisão. Com pessoas que transam essas drogas, nós, os usuários. Muito se poderia esclarecer. Mas deixam tudo às escondidas. 
— Isso, meu chapa, só daqui a cem anos! Essa de colocarem nas ruas o assunto, vai ser difícil. Preferem nos jogar dentro de hospícios ou em prisões. Eu já estou cansado disso, qualquer dia acabo com esse martírio, de entrar e sair desses hospícios. Tomo uma over e fim. Aqui dentro, só judiam, graças à ignorância. É melhor uma over e ponto final. 
 Aquelas palavras doeram lá no meu íntimo. Rogério estava cansado, vinte e dois anos que pareciam trinta. O que ele já tinha sofrido, só ele sabia. Abaixou a cabeça, já com sinais de calvície, rosto redondo, moreno claro, bigode preto ralo, e entreteve-se em seu ser sofrido.
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Nada falei, calei olhando aquele canto. Fomos interrompidos por um grito. 
— Cambada! Ó os remédios! — gritou o enfermeiro bundão. 
Trazia uma caixa com divisórias, colocou-a em cima da cadeira. 
 Alguns internos o rodearam, enquanto ele ia tirando copinhos plásticos com os comprimidos. Chamava o nome e os virava na palma da mão do sujeito. Alguns, já com canecas de alumínio amassadas e com água, tomavam e passavam a caneca ao seguinte. Esvaziadas as canecas, iam buscar mais água naquele canto. Num relâmpago, enchiam as canecas. Os indiferentes daquele canto se perturbavam com as presenças, mas logo se entregavam às suas fantasias. Surpresa foi a hora em que o enfermeiro, gaguejando, chamou pelo meu nome. Um a zero para o Rogério... sem ao menos um olá do famoso psiquiatra, eu já estava sendo medicado. Talvez esses psiquiatras sejam também algum tipo de bruxo e tenham uma bola de cristal... 
 Peguei os comprimidos: ao todo eram cinco e uma cápsula vermelha. No resto de água eu os engoli. Após o grupo dissolver-se o enfermeiro tentou dar para alguns daquele canto os comprimidos. Uns os apanhavam sem problemas, a outros nem foram 
oferecidos e alguns recusavam. Os comprimidos que sobraram foram pisados pelo enfermeiro. Achei um absurdo aquele desperdício, mas talvez mudasse de idéia! 
 Pouco depois dos comprimidos, a porta que dava acesso ao interior do pavilhão foi aberta. Devia ser umas onze horas. Chamada para o almoço. 
 Entraram, atropelando-se pela porta. Fui um dos últimos. Dentro, nas mesas compridas, pratos de alumínio, na maioria amassados, envelhecidos, sem a tinta do fundo, e colheres. Os maltrapilhos, mal-encarados, já estavam sentados. Os do canto, em pé, correndo pelo corredor dos fundos, escondiam-se no escuro, gritando. Além da confusão que faziam, o mau cheiro completava o cenário.
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Alguns urinados, outros cagados, que cheiro. Assim eles comem. 
 Chocado, procurei sair daquela sala, rápido. Percorri o corredor. Em outra sala 
vi mesas para quatro, com toalhas xadrez, pratos brancos de louça, colheres também. Tudo limpo, até os pacientes. Fui direto para meu quarto, sem apetite. Tudo ali era novo e assustador... nó na garganta... de bruços, cara no lençol, o nó vira vontade de chorar. 
 Rogério veio me buscar. Sentamos à mesma mesa. Pela porta da liberdade, entram panelões: arroz, macarrão, feijão e carne. Os dois enfermeiros serviam a todos, faziam os pratos, todos cheios acima da boca. Apetite não faltava, comiam como gulosos. Todos servidos, levavam as panelas para a outra sala. Mal toquei o prato, não tinha fome, encostei o prato. Comentei com Rogério: 
— Os lá de trás... como eles conseguem comer com os outros cagados ao seu lado? 
— Cara, é melhor você não esquentar com o que vê aqui dentro. 
— Os pratos deles são de alumínio. 
— Se fossem de louça poderiam se machucar. Estão a toda hora se agredindo. 
— Vocês... parecem que não comem há dias?! 
— São os remédios para abrir o apetite. 
 Não tinha fome. Meu prato não ficou sem assistência, logo foi pedido. Após o almoço, todos aos seus quartos. Deitar para fazer a digestão. Essa de irmos deitar após o almoço pareceu ser uma ordem aos da sala em frente ao meu quarto. Os lá de trás ficaram perambulando pelo corredor, em correrias e grunhidos. Deitado em minha cama, a porta do quarto semi-aberta, vi o enfermeiro negro surgir: 
— Tudo bem, Austry? 
— Nem tudo. 
—Por quê?
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Entrando, sentou-se na cama, ao lado dos meus pés. 
— Porque não consegui falar com o médico! Não sei o que estou fazendo aqui. Meu 
pai não tem dinheiro para pagar esse tratamento bobo. Não sei de nada... 
— Você não falou com o médico porque seu pai já falou com ele... — explicou 
calmo. 
— O que meu pai acha é uma coisa. O médico devia conversar comigo. Me examinar, 
fazer qualquer tipo de exame pra ver se tem necessidade de eu fazer esse chamado tratamento. Eu estou pra fazer vestibular, como é que ficam meus estudos? 
— O Dr. Alô Guimarães é um dos melhores psiquiatras do Paraná. Só em vê-lo ele já o analisou. Ele é o seu médico, é bastante experiente. 
— Ele é também adivinho... olhou-me por uns segundos e já soube que sou viciado... Qual é, Marcelo? é esse o seu nome? E outra, já estou tomando comprimidos. O homem, além de adivinho, deve ter uma bola de cristal, só pode ser isso. — Riu da maneira como falei. 
— Você está aqui pra sair do vício. Quem mandou se encher de porcaria por aí e quebrar tudo em casa? 
— Como é que é?... quebrar tudo em casa?! Isso é mentira... 
 Lembrei-me que quando eu queria sair e às vezes os velhos se opunham, fazia um escarcéu dentro do meu quarto, chutando meu guarda-roupa. Jogava algumas coisas 
ao chão e saía assim mesmo. Encontrando maconha na minha jaqueta, eles somaram: 
dois mais dois igual a cinco... são as drogas que fazem ele agir dessa maneira! Não tiveram a consciência de analisar a rebeldia da adolescência. A desinformação sobre as drogas, sobre o que Rogério e eu conversamos. E as manchetes: “Drogado maconheiro mata a mãe para comprar maconha...” “Maconheiro coloca maconha dentro de balas para viciar crianças...” Absurdos dessa natureza dominam a ignorância popular sobre as drogas. Meus pais fazem parte dessa grande massa popular manipulada por informações absurdas que acreditam ser possível colocar fumo de maconha misturado com açúcar em forma de balas a serem dadas para criancinhas chupar e se viciar.
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É o cúmulo do absurdo, mas a grande maioria acredita. E graças a essas fantasiosas manchetes, a obscuridade sobre o assunto das drogas na sociedade persiste... 
— Bem, isso é o que seu pai colocou na ficha... que você anda muito nervoso, desobediente e agressivo com todos. Eu não devia nem lhe contar isso! 
— Mas isso não prova que eu sou viciado. 
— Como não? Se você não escuta ninguém, quer fazer o que lhe vem à cabeça... algum problema você tem! 
— Posso ter algum problema, menos ser viciado. Sou meio revoltado com... nem eu sei o quê. Agora, com drogas, não tem nada a ver. Façam exame de sangue, sei lá o quê, mas vejam que não preciso de tratamento nenhum! 
— Não sei a sua história, só sei que você vai ser tratado pelas drogas que tomou lá fora. 
— Vão me tratar me dando mais drogas aqui dentro. 
— Mas aqui são todas bem administradas. 
— Numa ficha. Pois ninguém me tira da cabeça que vocês, pra começarem a me dar medicamentos, deveriam no mínimo fazer alguns exames. E também o psiquiatra devia ter ao menos conversado comigo. 
— Você parece ser mais velho, Austry. 
— Talvez a rua envelheça a gente mais cedo. Você disse que o Dr. Alô Guimarães vai ser o meu médico. E esse papo que eu ouvi de eletrochoque em viciado? 
— Mas você não é viciado... ou é? 
— É justamente por isso que eu quero que vocês façam os exames que quiserem, antes de me queimarem os chifres. Pô, Marcelo! me dê essa força, fale com o médico, explique a ele que foi um mal-entendido do meu pai. Explique pra ele! 
— Austry, eu não posso fazer isso, ele é o médico. Mas você não precisa ficar com medo de nada, aqui ninguém vai lhe fazer mal. Agora descanse do almoço.
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 Saiu, fiquei com meus botões. O que iriam fazer comigo? Essa porra de eletrochoque. Rogério tem verdadeiro pavor. E se esse médico do peru resolve me aplicar essa droga de choque, como será que é? A possibilidade de choque começou a perturbar-me. O pavor que Rogério tinha. Marcelo saiu e não tocou no assunto. Eletrochoque. Ai, meu Deus! Livrai-me dessa.
 Agoniado, o nó na garganta... (que merda! Quero chorar, mas não consigo). Reviro-me na cama-colchão de palha... queo pensar em outra coisa. Este quarto, olho os detalhes: o vitrô, não são barras, são armações de ferro... as paredes cor gelo, as portas cinza-claras. Vira tudo cinza quando acordo de manhã. A porta também tem uma pequena abertura, em sentido horizontal. Levantei o colchão, examinei a armação do estrado... todo armado, e o criado-mudo de latão, ou sei lá, verde abacate, com uma pequena gaveta e uma abertura maior em baixo, para as roupas. Algumas roupas minhas estavam ali naquela abertura do criado-mudo. Estava ainda com aquele pijama azul de bolinhas brancas.
 O teto... uma agonia faz correr o meu sangue, escuto as batidas do meu coração. Será que minha turma irá me visitar? Que sacanagem! Uma simples consulta com um psicólogo evitaria esse martírio todo. Era um martírio ficar num lugar desse um dia, que dirá, como o Rogério... cinco meses! Visitas só daqui a quinze dias, por quê? Deve ser para agente se acostumar a ficar aqui. Nem com anos e anos vou me acostumar num lugar nojento como esse. Um barulho despertou-me dos meus pensamentos.
 A porta estava fechada, não trancada. Vi olhos na abertura de uns cinco centímetros, depois a figura assoprou no buraco. Saiu. Não dei bola. Novamente o assoprão. Levantei e fiquei do lado da porta. Outro assoprão. Abri a porta rápido. Um cara, cabeça chata, paraíba, soltou um sorriso estridente e saiu pelo corredor rindo.   
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Ele tinha o rosto fino, bocudo, pele escura, não negro e nem mulato, cor de nortista do Brasil, também calvo, parecia o amigo da onça. Não lhe dei atenção, voltei para a cama, com meus botões... voltei a martirizar-me, estava com dó de mim mesmo. A revolta começou a vir à tona, aqueles assoprões recomeçaram na abertura, o pinel brincalhão já estava me irritando. Tentei acalmar-me, mas aqueles assoprões não deixavam, levantei e tentei pegar a hiena no cio.
- Vem cá, seu puto! – Tentei pegar em seu braço. Ele foi mais rápido e figiu pelo corredor, rindo. 
- Ei, ei, calma rapaz! – disse-me o enfermeiro.
- esse cara de hiena não para de assoprar na minha porta!
- É o Pernambuco, não ligue, não!... Ele faz isso com todo mundo. Ele só quer chamar a atenção.
- tudo bem, mas tava enchendo o saco.
- Ele é um dos mais velhos aqui dentro. Faz nove anos que ele está internado.
- O quê! Nove anos? Você está brincando...
- E tem cara aqui dentro a mais tempo.
- E os parentes? 
- Parentes? Esses caras já foram abandonados há muitos anos. Eles não têm ninguém por eles. O mundo deles é aqui dentro. Lá fora, eles não saberiam nem pegar um ônibus. Podíamos deixar as portas abertas e tocar fogo no pavilhão que eles não sairiam. 
- E quando morre um deles? 
- O sanatório faz o enterro. Este hospital é filiado à Federação Espírita do Paraná e, como caridade, eles seguram esses coitados aqui dentro. Lá fora eles virariam mendigos e morreriam. Aos sábados, vocês recebem passes com o seu Abib, que é um médium muito bom. - Enfermeiro falador, devia ser novato, era jovem.
- E você trabalha muito tempo aqui?
- Há seis meses, mais ou menos. 
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— E por que a maioria aqui é louco? Tenho visto neguinho aqui dentro só fodido... por que estão aí, cagando em si mesmos? O falador não respondeu, só deu uma piscadinha e virou-se em direção à porta da liberdade. Voltei para o meu quarto. Já não queria saber de mais nada. Quanto mais conversava, mais aquele lugar me parecia desprezível. Tudo tinha um gosto amargo, as surpresas eram desagradáveis, cada pessoa tinha uma história feia, eram enredos tristes, uns piores que os outros. 
 Chamada para o pátio. Repetia-se o quadro visto pela manhã. Cada um ocupava o mesmo espaço, aquele canto, alguns esparramados pela pouca grama. Tinha sim, uma 
mudança, o guardião era outro. O jeito era eu também conquistar um espaço e ficar coçando o saco, naquela grande-pequena jaula. 
— Rogério, quem é aquele enfermeiro falador? 
— É um estagiário. 
— E esse cão de guarda? 
— É o Luiz, enfermeiro da tarde. Gente boa. É malucão. 
— Como assim? 
— Ué, fuma unzinho também... 
— Será que ele tem um baseadinho aí pra gente? 
— Você acha que ele é trouxa? Ele já vem com a cabeça feita. Ele não vai arriscar o emprego dando fumo pra paciente. Ele é esperto, é bom malandro. 
— Porra, todo dia a transa é essa: pátio, remédio e comer. Não muda nunca? 
— Muda sim, nos dias de visitas e nos dias de choque. 
— Vem você outra vez com esse papo de choque. 
— Tá legal, quem vai ser o teu médico? 
— O Marcelo disse que é o Alô. Mas tem outro? 
— O administrador, dizem que também é médico, mas quem mexe na cuca do pessoal 
acho que é só o Dr. Alô. Esse sádico! 
Eu já estava perturbado, mas queria saber mais e, num masoquismo incontrolável, continuava a perguntar.
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— Desde que cheguei, ninguém falou nada de bom deste lugar. Não deve ser tão 
ruim como vocês estão dizendo. 
— Cara, isto aqui não é um clube de férias e nem uma clínica de repouso de filme americano. Isto aqui é um hospício brasileiro e nós somos segurados do INPS. Você não irá ver nada de bom. 
— Só quero sair o mais rápido possível daqui! 
— Austry não estou querendo assustá-lo. Mas encare a real. Você foi internado por insistência do seu pai, ele deve ter esperado um bom tempo, aqui as vagas são difíceis. Se você pensa que quando receber visitas eles irão tira-lo daqui, é fantasia sua. 
— Qual é, cara!? Ele vai ter que me tirar daqui! Se os exames não derem nada, não tem por que eu ficar aqui. 
— Porra! você tá parecendo um desses Zé-Bobões. Não vão fazer porra nenhuma de exames em você! E sabe o que vai acontecer quando vierem te visitar? — falou irritado. 
— Não sabia que você também é adivinho! 
— Não é ser adivinho. Você notou o apetite do pessoal hoje, na hora do almoço? Eles, nesses dias em que você não pode receber visitas, irão te engordar como se engorda porco em chiqueiro... você vai ter um apetite de comer tudo o que pintar com esses remédios pra abrir o apetite! Em quinze dias, cara, você vai estar gordinho... 
— E aí?... não tô entendendo... 
— E aí... quando os seus familiares vierem para visita, eles irão achar você mais gordo, mais forte, corado, de aparência melhor e mais calmo — efeitos dos medicamentos tranqüilizantes. Irão lhe dizer que foi ótimo trazerem você pra cá... Que o tratamento tá sendo bom. E nada, meu chapa, nada do que você disser eles irão escutar! Cara, esse pessoal é inteligente, são mafiosos. 
— Conheço meus velhos, assim que falar o que é isso aqui, tenho certeza de que irão me tirar.. 
— Vou torcer por você. Mas não sonhe muito com isso. A cada visita minha, eu também penso que os meus velhos irão me tirar, mas não tiram...
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— Mas o teu caso é outro, você é realmente viciado... 
— Você tá sonhando. O meu caso pra eles é o mesmo que o seu, somos os dois viciados! Caiu aqui dentro, o tratamento é generalizado. Ninguém escuta você, você é um viciado e está enlouquecendo por falta das drogas. Isso é o que representa sua figura para eles e a sua família. Você está doente, ficando louco e... a louco, ninguém dá ouvidos! Nós não temos nem esse direito. Se você se matar pra que o ouçam, irão dizer que você se matou porque estava louco... 
— Olhe, cara, não dá pra ficar trocando idéia contigo. Você tá me deixando muito confuso. Vou mijar. 
 Qual é a desse cara, quer me deixar maluco? Esse cara só pode estar revoltado. Pudera, cinco meses não são cinco dias! Estava tão irritado com o papo que, nem percebi, e estava no meio dos malditos. Em frente, um cara que não parava de bater ovos. Dois metros de altura, por um e meio de largura. Encarava-me, tremi nas bases. Olhando para cima, com minha cabeça um pouco acima da altura do seu umbigo, via-o mexer aquela mão, virando a cabeça e os olhos. Parecia um urso branco, pele branca. Com uma patada daquele animal eu ficaria sem a cabeça. Atrapalhado na porta do banheiro, olhei em volta. Os outros crônicos também estavam parados e me olhando. De imediato, fiz a volta para sair daquele meio... antes, porém, uma mão levou o cigarro que eu tinha entre os meus dedos. Não reclamei, dei graças a Deus, saí daquele canto. 
 Naquele canto, em poucos segundos, eu, o intruso, percebi que havia invadido um espaço só deles. Como não fora convidado para aquele espaço, eu os ameaçava. 
Pareceu-me que naquele momento, no ostracismo em que viviam, todos romperam suas 
cascas em defesa de seus espaços. Espaço mínimo, mas só deles. Incrível o entendimento, o respeito que tinham um pelo outro em seu espaço e fantasia. Brigavam entre si, pelas visíveis de agressões: rosto, braços, pescoços arranhados e até mordidos. Formavam um grupo de psicopatas irrecuperáveis, loucos-loucos, no sentido da palavra, uma pequena comunidade, cada um aceitando as loucuras e fantasias individuais, sem impor-se uns sobre os outros. Havia um entendimento naquele grupo, coisa impossível de se imaginar, mas de alguma maneira eles se entendiam., protegiam-se e, o mais interessante, respeitavam-se. Algo para os paranormais explicarem. Até carinho, eles faziam, às vezes. Como era possível, pessoa que não tinham mais nem o controle de suas funções orgânicas, que rasgavam dinheiro e comiam merda, serem unidos daquela maneira?
 Fui pedir o auxílio do enfermeiro guardião do pátio. Ele me levou até os crônicos – os goiabas ou goiabões, como eram chamados.
- Tá calminho hoje, tá? É assim que eu gosto... – falou para o urso polar batedor de ovos.
- To bonzinho sim, to sim. Quem é esse aí? – o urso polar falava revirando os olhos e as mãos que nunca paravam de mexer.
- É um amigo de vocês, ele vai ficar um tempo aqui com a gente.
 Eu estava receoso, todos os outros estavam me examinando.
- Mas que não se meta comigo.
 “Eu, me meter contigo, Zé grandão? Nem em sonho...”, pensava eu.
 Ele não parava com aquela mão. Revirava os olhos e às vezes a cabeça. Sua voz de retardado era assustadora. Ao sair do banheiro o enfermeiro estava andando de cavalinho nas costas de Zé grandão, o urso branco. Sua passividade era ilusória, ele era altamente agressivo, um psicopata perigoso. Para acalmá-lo usavam a tortulina, o Haloperidol. Mas fiquei sabendo mais tarde que no Zé grandão costumavam aplicar o Triperidol, cujo efeito é maior que o Haloperidol.
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 Sentei em outro canto, os papos do Rogério estavam me cansando. Fiquei fumando com os olhos fechados, naquele sol de fim de inverno. Quando o cigarro chegou à xepa, eu o joguei fora. Dois dos crônicos, que já estavam me observando há algum tempo, pularam na xepa. Em meio a mordidas e arranhões, um deles conseguiu apanhá-la e saiu fumando. Tirei a carteira e dei um cigarro ao que havia perdido a disputa. Seus dedos estavam marrom-escuro de tanto fumar xepa. Vieram outros querendo também cigarros. Dei mais alguns e procurei outro lugar. 
 Deveria ser umas três horas da tarde: chamada dos remédios. Recebi três comprimidos desta vez. Em seguida, vieram bules, dois; saco de pães, um. Canecas enfileiradas, de alumínio. Tudo veio em cima de uma mesinha com rodas. Os pães somem, a fila pela cevada com leite é rápida. Todos queriam comer. Alguns do canto também vieram buscar o seu quinhão, não todos. O enfermeiro ia até eles entregando uma caneca e um pão para os indiferentes. Comiam devorando o pão na primeira bocada, (não os do canto). Os pães que sobravam no saco eram esperados pelos gulosos impacientes. Comiam e comiam, parecendo uma porcada na engorda. Mais um ponto para você, Rogério. 
Após o café-cevada, acendi outro cigarro. De imediato, alguns crônicos começaram a me observar. Quando termine joguei no chão — a cena anterior se repetiu. Eram três agora, numa disputa rápida e agressiva. A distância, ficavam à espera, como urubus, esperando a guimba. No chão, o mais esperto pegava. Ao conseguir colocá-la na boca, não era mais incomodado pelos outros competidores. 
 A necessidade que esses crônicos esquecidos têm de cigarro é algo também aterrador. Mordem-se, arranham-se por uma xepa... homens, numa disputa dessas! Seres humanos ou fera? Em grunhidos lutam pelo grande prêmio: a guimba. Que os falsos moralistas e insensíveis engulam suas falsidades, mas a grande realidade é que seria um ato de caridade trazer cigarros para  esses homens.
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Não trazer bolachinhas e doces. Eles necessitam cigarros. Muitos podem achar absurdo. Mas vê-los agindo como cães agredindo-se por um osso na certa mudaria seu parecer. Esses tipos de instituições poderiam ter convênios com fabricas de cigarros e os refugos de cigarros dessas fábricas poderiam ir para esses esquecidos. Mas a falsa moralidade de uma cidade também falsa nunca iria permitir um convênio desse tipo. Preferem deixa-los como estão, escondidos, rasgando suas carnes por umas xepas de cigarros. Estaria mais de acordo com regras da nossa moralidade: cigarro provoca câncer. 
 Fim de tarde.. - bom apenas para coçar, curtindo o peso do nosso martírio de não fazer nada. A ociosidade era tediosa. Alguns jogavam baralho, grupo fechado, até o enfermeiro maconheiro participou. Eram alcoólatras, grupo fechado, elite do hospício. 
 Elite - pinguços conceituados, até um médico e um executivo da família Fontana, estavam ali conosco. Esse médico era clínico, um alcoólatra, gente finíssima. E o Fontana, como o amávamos, também o era. Mais tarde tive o prazer de conhecê-los. O Fontana, seu nome real de família, era um cara de uns trinta e seis anos mais ou menos. Tinha os cabelos pretos bem cortados e um pouco ondulados. Magro, alto, era um homem muito bonito, parecia um galã de cinema. Era também muito fino e viajado. As vezes eu o perturbava para que me contasse suas viagens ao exterior. Passava pouquíssimo tempo naaquele pavilhão dos infelizes e era logo transferido para os apartamentos. Freguês já da casa, os enfermeiros puxavam o seu saco. Tinha grana ou a família dele tinha. 
 O médico clínico, não me recordo de seu nome, estava ali devido ao alcoolismo e a alguma mutreta ligada à sua profissão. Nunca ficamos sabendo ao certo. 
 Novamente a chamada para os remédios. Deveria ser quase seis da tarde. Recebi, dessa vez, cinco comprimidos e a cápsula vermelha. Eram treze a quinze comprimidos, só nesse dia. Fui apanhar água, lá naquele canto.
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Rogério me seguiu. Os malditos e indiferentes não se importaram com minha presença relâmpago naquele canto. 
— Austry, você já percebeu quantos comprimidos lhe deram  hoje?
— Já passou de dez, eu acho. 
— Eles vão impregná-lo de remédio. Mas comigo não, ó... — cuspiu-os na palma da mão e os guardou no bolso. 
— Depois eu os jogo fora. 
— Rogério! Você joga os comprimidos fora? É por isso que você não sara. 
— Cara, essas porcarias não curam ninguém. Só servem pra deixá-lo impregnado, só isso! 
— Impregnado, o que é isso? 
— Impregnado, xará, é ficar como aqueles ali. O sujeito fica vinte e quatro horas por dia viajando, sem vontade própria, lento, não consegue nem ao menos desabotoar uma camisa sozinho. 
Tomei-os assim mesmo, não sei por quê. 
— Cara, já vi que não adianta lhe dar toques. Você é novato, daqui a uns dias você vai ver as conseqüências dessas drogas. 
— Cara, até agora você só me deixou cabreiro. Você já falou em choque, em enganação dos médicos, em sei lá o quê. Tudo que você falou, até agora, foi coisa ruim. Olhe, sinceramente dá um tempo! 
— Austry, eu só estou querendo te ajudar... te preparar para o que eles irão fazer contigo aqui dentro, e você poder se defender deles... É só isso! 
— Eu agradeço, cara, mas você me deixa mais confuso. 
— Este pavilhão onde estamos, nós internos e os enfermeiros o chamamos de San Quentin. O nome verdadeiro é de um doutorzinho, tem a plaquinha lá fora. Mas todos aqui o conhecem pelo apelido de San Quentin, o mesmo nome de uma prisão fodida que tem ou tinha nos Estados Unidos. 
— E o que isso tem a ver?
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— Este pavilhão, o San Quentin, é uma triagem. Todo mundo que é internado no Sanatório Bom Retiro é obrigado primeiro a passar por este pavilhão. Aqui dentro, eles fazem a desintoxicação, aplicam o famigerado eletrochoque... fazem o diabo. Depois você é transferido para outros pavilhões. O cara que puder pagar os apartamentos, vai pra lá. 
— Quer dizer que este pavilhão, San Quentin, é a lavagem da roupa suja? 
— Mais ou menos isso. Este hospital funciona bem na desintoxicação dos alcoólatras. Fazem uma lavagem no sujeito, soro e sei lá o quê. Funciona. Mas, em tratamento de viciados em drogas é um crime o que eles fazem com a gente, e... 
— Calma Rogério, eu não tô mais a fim desse papo. 
 Não dava para continuar esse papo cavernoso com o Rogério. A porta se abriu, 
todos entraram, alguns se atropelando. Nas mesas grandes os pratos de alumínio amassados, talvez pela pancadaria que, com certeza, pintava. Tudo se repetia: o que virá na hora do almoço? 
 Jantei, não comi até o fim. O televisor, que ficava numa prateleira na parede, na nossa sala, após o jantar era ligado. Não me interessei, fui para o quarto. Em torno das vinte e uma horas, outra chamada para os comprimidos. Desta vez, três comprimidos. E todo mundo para a caminha. O quarto foi trancado pelo enfermeiro noturno. Antes, avisou-me que se quisesse ir ao banheiro era só bater na porta. Comecei a repassar tudo, o papo do Rogério, os que ficavam naquele canto, tantos comprimidos, minha família... meus estudos, minha turma. Virava de um lado para o outro, mais que charuto na boca de bêbado. Com custo consegui dormir. 
 Pela manhã, quartos abertos, fomos acordados aos gritos. 
— Ó, o café, pessoal! Todos tomar café. Vamos, vamos logo, todo mundo de pé — o 
enfermeiro noturno fazia uma zorra, depois sumia.
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 Levantei a fim de tomar um banho. No chuveiro, já para entrar, um outro paciente da nossa sala de jantar disse: 
— Vai tomar banho? Vai perder o café. 
— Não tô a fim de perder o café. Estou com uma fome! — Só lavei o rosto e os dentes. 
— Hoje tem visitas! — era o comentário. 
Quinta-feira, dia de visitas. Será que meu pai vem? Mesmo se vier, será difícil me deixarem vê-lo. 
 Quinta-feira: visitas, não para todos, apenas para alguns. Ninguém para ver os 
esquecidos. Esses esquecidos e malditos continuavam encostados pelo INPS, não por caridade espírita. Infelizes, foram usados e mexidos. Agora, vegetam como plantas secas esperando a hora de caírem de seus caules. De caridade, só recebem um ou outro cigarro de algum interno novato. Ou alguém que lhes dá um par de meias furadas. Essa é a caridade que recebem, mas que trocariam sem pestanejar: o trapo pelo cigarro. Mantidos em alas proibidas aos olhos de visitantes, constituem-se em verdadeira vergonha para uma sociedade de “normais”. Num martírio lento, eles esperam que as drogas os matem, explorados pela instituição que agora recebe os elogios da sociedade, por mantê-los sem condições mínimas de higiene e valorização humana. Já serviram às experiências para o uso de novas drogas, novas teses, novos tipos de tratamento. Fizeram sua parte como cobaias. Agora são lixos humanos. Empilhados como inúteis, esperam lentamente que os efeitos de anos de medicamentos os matem. Que caridade é essa? Mais caridoso seria elimina-los de uma vez, limpando assim a vergonha de uma sociedade hipócrita. Sociedade esta constituída por cidadãos que sabem o que ocorre dentro dessas instituições e, por comodismo e desumanidade, se fazem de desentendidos do assunto, leigos... e isso é problema para os especialistas da área. É mais cômodo fazer vista grossa. 
 Por uma bandeira vil, que essa sociedade de hipócritas insensíveis denominou de “caridade”, eles são mantidos vegetando e apodrecendo com suas fezes.
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A essa sociedade de falsos caridosos eu dou de graça uma sugestão: colocar todos esses inúteis dentro de um barracão de madeira podre e inútil também; e, com duas pedras, raspando uma na outra, até conseguir a chama, atear fogo ao barracão. Os que conseguirem sair vivos do barracão, sugiro mata-los a pedradas! É mais caridoso que deixá-los em cantos malditos, apodrecendo com suas fezes. 
 Ao sair do banheiro resolvi fazer uma peregrinação ao fundo escuro daquele 
pavilhão. Ao entrar naquele corredor, que iniciava logo após as mesas grandes, não consegui chegar nem na metade. O cheiro de fezes era insuportável. Consegui ver o interior de um dos quartos. Uma estopa amarela, já aparentando algo podre, de uma cor amarronzada. Um cobertor velho, como os que distribuem nas cadeias, devia estar duro de sujeira. As paredes daquilo que eu estava vendo, nem quarto e nem cova, tinham marcas de mãos e dedos escorridos. Eram fezes, merda podre. Realmente não conseguiria ir até o fundo do pavilhão. O cheiro era insuportável e a ânsia de vomitar se manifestou. Voltei ao banheiro, lavei o rosto e, olhando-me no espelho, consegui chorar um pouco. 
 Hoje é quinta-feira, o hospício está mais alegre. Dia de visitas. Após o café, fila no banheiro. Muitos riem esperançosos. Tomam banho e colocam a roupa de domingo. Alguns enfermeiros estão dando banho naquele crônico incapacitado que passa os dias lá dentro, urinado e cagado. Mas hoje ele tem visita, é dia de banho. Até o cabelinho do goiaba, o enfermeiro faz questão de ajeitar com a ponta do pente sujo, de dividi-lo bem ao meio, bem certinho. Hoje ele tem visita. Tudo bonitinho... a preparação começa logo após o café da manhã, antes das sete. O grande espetáculo está marcado para as três horas da tarde, mas são muitos preparando-se. A direção do espetáculo exige que seja do agrado de todos os ilustres visitantes: os familiares. Estava bem melhor que ontem. Um agito. Se aquela ociosidade se repetisse hoje, não daria para agüentar.
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— Mas que agito, hein, Rogério! 
— Visitas, é bom ver a família. 
— Eles entram aqui no pavilhão? 
— Aqui dentro é expressamente proibida a entrada dos familiares e pessoas estranhas. 
— Não querem mostrar como vivemos. Escondem a realidade do terror que é isso. 
— Você já está começando a entender este lugar. 
— Também, ontem você não me deu folga. Não consegui dormir. 
— Nem com o sonífero que lhe deram? 
— Não, eu dormi. Mas tudo o que vi... não foi fácil. 
— E gostou? 
— É o lugar ideal pra curtir umas férias — rimos —, onde esse pessoal recebe as visitas? 
— No pátio, lá fora. 
— Lá fora não tem muro, é só dar no pinote. 
— Já fiz isso, meus velhos mandaram um camburão me trazer de volta. Foi pior. 
— Cara, será que se meu pai vier, eles me deixam falar com ele? 
— Tire o cavalo da chuva! Seu pai, só daqui a quinze dias. Ele sabe disso, duvido que ele venha. 
— Treze dias, então. Se eu tivesse uma chance de falar com meu pai, não ficaria mais um dia aqui. 
— Não adiantaria nada. 
— Tá legal, Dr. Sabe-tudo. Não vai tomar banhinho também e pentear o cabelinho, pra entrar em cena? 
— Mais tarde um dos melhores figurantes irá se produzir. 
 Tudo realmente era uma grande produção. O espetáculo parecia uma estréia de 
teatro. Os mínimos detalhes eram lembrados. O grande cenário era lá fora. O interior do pavilhão era proibido à visita de estranhos, poderiam prejudicar o andamento do valioso tratamento!
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 A grande peça acontecia ao ar livre, no imenso jardim florido do Sanatório Bom 
Retiro. Até o nome é bonito: Bom Retiro — soa a paz! O jardim arborizado, os pássaros cantando freneticamente, paz e sossego no ar... Banquinhos de madeira, todos pintadinhos de branco, um recanto de namorados dos tempos da vovó, só faltando a bandinha tocando e o lago com os cisnes nadando. Uma paz celestial, às vezes quebrada por algum grito de um crônico dentro do pavilhão que quase instantaneamente é sufocado pela mão do enfermeiro em sua garganta. O espetáculo acontecia para o agrado de todos, ou melhor, dos ilustres visitantes, que a direção do sanatório fazia questão de impressionar. Ao interno, não sobravam muitas chances de ser ouvido. Um lugar de tanta beleza e tranqüilidade impressionava tanto que a família toda queria ficar internada. 
 Eram sensibilizados com a dedicação, calma e gentileza dos enfermeiros que trocavam o autoritarismo e os gritos por falas mansas, na frente das visitas. Alguns eram até bonificados com dinheiro e presentes dos familiares. Discretamente, aceitavam essas bonificações. 
 A chance de nós, internos, sermos ouvidos era inexistente perante tamanha superprodução, digna de Hollywood. Não teríamos a mínima credibilidade, mesmo que rasgássemos o corpo para provar que o que ocorria lá dentro era o inverso do mostrado aqui fora. 
 O hospício parecia em festa. Era quinta-feira, dia de visitas. O almoço também era especial, com maionese, frango ao molho, macarrão, arroz, feijão e outros bichos. Comi como há muito tempo não comia, estava com um bom apetite. O pátio ficou aberto na hora das visitas. Nós, que não tínhamos visitantes, ficamos lá. Estavam todos os que tinham visitas bem limpinhos. Alguns até tomaram um segundo banho de perfume. Esperavam ansiosos chegar a hora. Até o médico clínico estava rindo, na esperança de que seus problemas lá fora tivessem tomado o rumo que ele esperava.
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Como ele, outros estavam com seus anseios renovados, esperançosos até de irem embora. Eram esperanças ousadas e eles estavam alegres com elas, a ponto de distribuírem cigarros aos esquecidos, mesmo sem eles terem pedido. 
 Pouco antes das três horas, todos aguardavam ansiosos que o enfermeiro, que fechou a porta de acesso ao interior do pavilhão, colocasse a cabeça e os chamasse. 
 Os crônicos pareciam saber que todo o hospício estava em alto astral e aproveitavam as gentilezas dos esperançosos. Começaram as chamadas, saíam do pátio com sorrisos até as orelhas. Até eu fiquei com uma certa esperança que meu pai tivesse vindo e que eles me deixariam vê-lo. Era remota, mas não impossível. 
 Durante os minutos preciosos de espera ficavam impacientes. Fumavam mais que o normal. Ao ouvir o seu nome chamado, a angústia dava lugar a um largo sorriso. 
Saíam do pátio e levavam seus desejos ardentes, o objetivo maior: ir para casa. Sabiam que teriam de representar também. Não podiam demonstrar toda a sua ansiedade em sair daquele lugar. Precisavam se controlar, e mostrar aos seus que estavam calmos, conscientes e receptivos. Controlar-se ao máximo para mostrar que não era mais necessário ficar ali dentro. Não podiam e nem deviam explodir se os familiares fossem contra a sua saída. Se o fizessem, as esperanças iriam se perder. Tinham que representar também, dentro daquela peça que envolvia muitos personagens, sendo o deles o papel mais difícil. 
 Os parentes do Rogério também vieram. Iria pedir para o tirarem dali ou, pelo 
menos, transferi-lo de pavilhão. Pois nos outros pavilhões se tinha a liberdade de pelo menos andar pelo jardim do Sanatório, à hora que se quisesse. E nós, ali do pavilhão San Quentin, éramos controlados em nossas horas de pátio. Um pátio de delegacia, pequeno. Rogério saiu também, esperançoso. Ficamos nós: eu, os esquecidos e um ou outro que se preparou e a visita não veio. O horário de visitas terminava às dezessete horas.
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Aquela tarde foi diferente da anterior. Desejava que o Rogério conseguisse o seu objetivo. Meu velho não veio mesmo. 
 As visitas terminaram. Os internos vieram derrubando frutas, doces, cigarros, 
biscoitos e balas. Derrubavam esperanças. Risos antecipados tornaram-se olhares frustrados. Já não riam. Angústias nas mãos, jogam-nas no quarto, esparramam pelo chão. De que adiantam aquelas guloseimas? 
 Os visitantes se foram, convencidos pelo belo espetáculo hollywoodiano. Os que 
tinham ensaiado a manhã toda para falar, falaram alguns. Os ouvidos, ouviram? Pouco provável que ouvissem o que realmente era fundamental para o interno. Tudo foi encarado por seus familiares como meras reclamações, por estarem ali presos. As reclamações pelos maustratos, pelo isolamento, pelos choques, pelos remédios, pelos crônicos cagados ao seu redor. Quando iriam tira-los dali? Tudo que era reclamado deixava de ter importância. O que realmente importava era que o tratamento estava sendo feito. 
 Tratamento diagnosticado por uma bola de cristal ou por adivinhação. Seria melhor levar-nos a tratamento com pai-de- santo. 
A empolgação, que começou pela manhã, deu lugar a um ar fúnebre. Talvez por isso os psiquiatras digam que as visitas atrapalham o andamento do tratamento. 
 Que tratamento? Engolir comprimidos e ficar preso, isolado, isso é tratamento? 
 O silêncio era quebrado apenas pelos crônicos indiferentes. Estes se lambuzam 
com doces, chocolates e outras baboseiras. Um grupo de crônicos circunda aquele outro que recebeu visita e tem cigarros. Ficam numa roda, fumando um cigarro após o outro, até fumarem todo o maço — depois dispersam. Os outros internos analisam em suas camas, cabisbaixos, onde erraram ao falar com seus familiares. A outros, a esperança parece que irá se concretizar. Logo estarão fora dali.
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 A chamada para os remédios da hora do jantar. Muitos não comeram o de costume, estavam empapuçados pelo que lhes trouxeram os familiares. Televisão até as 
nove da noite, outra chamada para os remédios. Tomei a mesma dosagem de comprimidos do dia anterior. Todos no quarto, o noturno tranca as portas. 
— Boa-noite, Austry. 
— Boa-noite. 
Escuto o barulho da chave na fechadura, tudo escurece, apenas a claridade da abertura da porta. Pensativo, adormeço.
Capítulo 3
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 NA SEXTA-FEIRA, PELA MANHÃ, o enfermeiro noturno abriu meu quarto e ficou aguardando que me vestisse. Estranhei. Nos três dias que estava ali, nunca havia me esperado. Fui ao banheiro. Ele me esperou. Levou-me a um quarto entre duas salas e ameaçou fechar a porta. 
— Ei, espere aí! Eu vou ficar aqui dentro trancado, por quê? 
— O médico vai falar com você. 
 Trancou a porta e, pela pequena abertura, vi-o afastar-se. Por aqueles poucos centímetros via o pessoal passando para o café. Um pensamento tomou conta do meu ser, como se o ar daquele quarto me sufocasse. Comecei a tremer. As minhas pernas não paravam de tremer. Esse pensamento... 
 O noturno informou-me que vou falar com o médico, mas por que me trancar? Corri em direção à cama e levantei o colchão, que era de palha. O estrado, de madeira. 
O Rogério falou que a gente fica em jejum... e eu não vou tomar café. Não, meu Deus! Não pode ser. Eles não vão fazer isso comigo — eu não sou viciado e nem louco. Eles não podem fazer isso comigo... eu não preciso, meu Deus! 
 Aquele pensamento tomou conta do meu ser e deixou-me apavorado. Um medo que nunca havia experimentado antes, mesmo quando caí em cana. Era um pavor incontrolável do desconhecido. Teriam que me nocautear para fazer isso comigo!
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Olhos na abertura horizontal da porta. Graças a Deus, vão me tirar daqui de dentro. Desesperado, corro até essa abertura, coloco os olhos. 
— Pernambuco, você sabe o que vão fazer comigo? — Ele me assopra nos olhos e sai 
rindo, estridente. 
 Volto. Sento-me na cama. As minhas pernas não param de tremer. Estou sufocado, não consigo nem respirar. Estão terminando o café, passando pelo corredor. Vou novamente à abertura. 
— Ei... ei, vem aqui, vem cá — chamo um crônico. 
— Haanmnn... — parou no corredor. 
— Chama o Rogério pra mim... 
— Haammm... — não entendia. 
— Nada, saia daí, saia, porra! 
Fiquei na abertura até que outro interno passasse. 
— Ei... Ei, Camargo! Venha aqui um pouco!... 
Camargo, um alcoólatra, já havíamos conversado: 
— O que é, Austry? 
— Você sabe por que me prenderam aqui? 
A resposta demorou. 
— Bem, eu acho que você vai tomar choque. Mas fique calmo, Austry, não dói nada — falou com tristeza. 
 Não consegui mais indagá-lo. Saí da abertura, sentei naquele monte de palha unida. No quarto só havia aquela cama e o vitrô de armação de ferro, com vidros aramados. Fiquei desolado. Aquele pensamento. Justamente, o eletrochoque! Eles não podem fazer isso comigo, meu Deus. Eles não me podem violentar dessa maneira. Por que eles irão me aplicar essa droga? Meu Deus... meu Deus! Como será que é isso? O Rogério falou que é a pior coisa que eles fazem aqui dentro com a gente. Meu Deus! Como será essa aplicação? Eu não quero tomar essa coisa. Quando abrirem a porta, saio com tudo, vão ter que me aplicar no braço essa droga. O terror na minha mente era tanto que parecia que estava aguardando a hora da execução na cadeira elétrica. Não podia aceitar o fato de tomar eletrochoque.
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Como eles têm esse direito? Como é que eles podem fazer isso comigo? Isso não é justo, eles estão me violentando. Pai, como é que você permite que façam isso comigo?! 
Meu único contato com os outros era aquela abertura na porta. 
— Ei! ei, Fontana! Venha cá!... um minutinho... 
—Diga... 
— Fontana, eles vão me aplicar choque? 
— Acho que sim. 
— Eles não podem fazer isso comigo! Cadê o Rogério? 
— O Rogério está em outro quarto. Acho que ele vai tomar choque também. 
— A que horas eles aplicam essa droga? 
— As dez horas. 
— Que horas são agora? 
— Vinte pras sete. 
— Cara, a gente vai ficar fechado aqui até essa hora? 
— É isso aí, Austry. Sinto muito, mas não posso fazer nada pra te ajudar. 
— Eu sei, obrigado, Fontana. — Saiu em direção ao fundo do pavilhão, certamente para o pátio. 
 Dez horas. É o horário em que o Dr. Alô Guimarães chega. É só ele que faz as 
aplicações, segundo Rogério. Sentei naquela maldita cama. Quantos ali já haviam perdido os sentidos? 
— os sentidos. Ele me falou, também, que a gente perde os sentidos. Os outros já saíram todos para o pátio. Não se ouve mais barulho. Só o dos enfermeiros, passando pelo corredor. Já devem ser quase oito horas, agora. O que fazer para não tomar essa porra? Só se eu me atirar de cabeça nessa parede! Arrebentar minha cabeça. Mas isso deve ser pior. O Camargo disse que não dói. Também! não é o chifre dele que irão queimar. Como é que ele sabe que não dói? Não dão eletrochoque em alcoólatra. 
 As horas voavam, perguntei a um enfermeiro. Já eram nove e meia. Pedi-lhe para me tirar dali. Não podia — disse-me o falador.
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Meia hora apenas para eu entrar nesse clube seleto — o do eletrochoque. Eu realmente não queria fazer parte... Esse tempo de agonia, passando sem pena. Sufocado pelo medo, recorria minuto a minuto a Deus. Senti-me um pouco mais calmo, mas estava chegando a hora. Não queria pensar nisso. Eu não queria. Eu não vou pensar nisso! — afirmava para mim mesmo. 
 Deitado na cama, esperava. Aqueles minutos pareciam então uma eternidade. Já que vão fazer isso, tomara que façam logo... Essa espera é foda. Esse médico do caralho, que nunca chega! Meu medo começou a mexer com minha ira. Isso era bom, 
me dava coragem. Mas foi só ouvir a voz do Rogério no outro quarto que o meu pavor voltou mais forte ainda. 
— Pelo amor de Deus, Doutor Alô!... não preciso mais! Doutor, eu já estou bom. Por favor, não façam isso comigo, pelo amor de Deus... 
— Calma, você já tomou outros antes. Você sabe que não vai doer, fique calmo! — dizia Marcelo. 
— Mas eu não preciso mais. Por que mais choque? Pelo amor de Deus... por caridade! não me apliquem choque... — implorava Rogério, em voz chorosa. Ele estava chorando. Eu nem respirar conseguia mais. O que é isso, meu Deus? O que eles estão fazendo? O que eles vão fazer comigo? Não consigo respirar... Meu Deus, meu Deus! Minha Nossa Senhora! Meu coração vai sair pela boca. Eu não consigo respirar. Minhas pernas tremem, não consigo parar de tremer. Os gritos. 
— Marcelo, fale pra esse sádico que eu não preciso mais. Fale pra esse médico filho-da-puta que eu não vou tomar esse choque! — ameaça Rogério. 
 Em seguida, barulho. Batidas na parede. Estavam pegando Rogério à força. 
— Me larguem, seus putos... Ninguém vai me aplicar essa porra... Me larguem! — gritava Rogério. 
— Segura as pernas dele... segura... coloque na cama... um, dois... já. 
 
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 Eu estava petrificado pelo medo. Não sei se conseguiria ter reação Os gritos continuavam. 
— Vamos, Rogério, abra a boca. Vamos, abra — dizia Marcelo, autoritário. Silêncio. Após, um longo gemido — muito longo. 
— Hauuummmmm. 
 O gemido longo. Não ouvi mais a voz de ninguém. Apavorado — agora é a minha vez! Barulho de rodinhas. Param em frente à porta do quarto. Apavorado, no canto ao lado da janela, quero entrar dentro da parede, esconder-me no meio do cimento. Olhos na abertura. Chave na porta. Rodam a fechadura. Meu Deus! estou tonto, falta-me ar. Só ouço as batidas do meu coração. Minhas pernas estão tremendo, 
acho que vou desmaiar. Entra o Marcelo e outro. 
— Marcelo, o que vocês vão fazer comigo? — consegui falar com muito custo. 
— Calma, Austry! não tenha medo, ninguém aqui vai lhe fazer mal, confie em mim. 
Não vai doer nada. 
 Estava paralisado de medo. Uma reação eu não conseguiria, estava completamente sem ação. Minhas pernas mal me agüentavam em pé. Marcelo se aproximou, apanhou meu braço. O Dr. Alô parado na porta com um tubo branco em cada mão, sorriso nos lábios. Marcelo, lentamente, deitou-me. Eu estava em choque de tanto medo. Via tudo e não tinha como reagir. Mesmo que quisesse, não tinha forças. Fui deitado de barriga para cima, com a cabeça em direção à porta. 
 Marcelo colocou uma das suas pernas dobradas em cima do meu tórax. Uma das mãos em cada braço meu, perto dos ombros, forçando tudo para baixo. O outro enfermeiro pediu que abrisse a boca, e por ela enfiou um pequeno tubo preto oco, de borracha. Disse que mordesse com força. Em seguida, juntou minhas pernas e começou a forçá-las para baixo. Antes, porém, passou alguma coisa gordurosa em minhas têmporas. Eu não conseguia mais raciocinar — estava paralisado, O pavor devia estar explodindo meus olhos.
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Meu corpo todo era pressionado para baixo. Eles faziam força além do peso dos seus corpos. Meu Deus, o que era aquilo? Eu mordia com força aquele tubo em minha boca. Não podia ver o médico. Eles apertavam demais o meu corpo contra o colchão. Vi o médico se aproximar da minha cabeça, por trás, seu rosto perto do meu. Não tinha mais aquele sorriso falso. Olhou em volta, examinou as minhas têmporas. Suas mãos tocaram meu cabelo, limpando-as. Em seguida, recuou um pouco. Só escutei parte do meu gemido. Perdi os sentidos. 
 Não sei precisar o tempo que fiquei desacordado. Quando acordei, a primeira coisa que veio a minha mente foi uma sensação estranha. Não sabia se já havia tomado o choque ou se ainda iria toma-lo. Levantei rápido. Uma dor de cabeça, como se alguém tivesse arrebentado uma garrafa nela. A dor de cabeça era muito forte, meu peito também doía muito. Eu havia babado. Eu estava todo babado. E as dores, eram tantas. Meus pensamentos, todos embaraçados. Estava sentado, nem sabia como havia conseguido me sentar. A porta estava aberta. Estava todo doído. Minha respiração, cansada. Tudo doía ao respirar. Queria me levantar, mas o esforço parecia muito grande. Minha cabeça... como doía — tudo doía! Estava acordando tão mal... Queria me levantar, mas estava sentado. Como havia me sentado? Balançava a cabeça, como doía. Meu peito doía. O choque! eu tomei. Estava confuso. Não controlava minhas idéias. Os pensamentos iam e vinham. Queria sair daquela cama. Não conseguia sozinho. Entrou o enfermeiro falador, ajudou-me. Levantei-me vagarosamente. Tudo doía. Parecia que tinha sido atropelado. 
 Levado à sala, sento-me. Ele traz o café com cevada e leite. Tomo um gole. Desceu quadrado, doía o esôfago. Mordi o pão, os dentes também doíam. Caralho!... o que fizeram comigo? 
 Com sacrifício tomei aquele café, a reação veio em seguida. Vomitei tudo em cima da mesa. Levado ao pátio, procurei um espaço.
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Sentei-me no chão de cimento. Os outros olhavam. Não via ninguém. As dores de cabeça, peito... tudo doía. Fui escorregando pela parede até chegar ao chão com a cabeça. Encolhi-me. 
 Cutucaram meu pé. Era o Rogério. Sentou-se ao meu lado. Não mudei de posição. Seus olhos estavam muito vermelhos, como um pimentão. Ele deu um pequeno sorriso. 
— É foda, cara, é foda... — disse desolado. 
 Com a cabeça no chão, comecei a chorar. Não de dor, embora pudesse ser. Chorava de revolta com o que fizeram comigo. Rogério devia estar sentindo algo parecido. Percebeu meu desabafo e, em sinal de respeito, deixou-me sozinho. 
 O que fizeram comigo foi uma violência. Sentia-me violentado, como se tivessem me currado. Fora violentado. O sol testava fazendo a minha cabeça ficar mais 
dolorida. Fui ao enfermeiro guardião pedir um comprimido para dor. Sugeriu que fosse me deitar no meu quarto. Passei pelo quarto do Rogério, que estava deitado, com o travesseiro cobrindo a cabeça. Deitei como se tivesse caído de um carro a uns 100 km por hora, procurando uma posição que doesse menos. Só saí na hora em que o enfermeiro me chamou para os comprimidos. 
 Tentei almoçar, mas o cheiro de comida me dava ânsia de vômito. Tentei levantar da mesa e não deu para segurar. Tudo para fora. Devo ter estragado o apetite de 
alguém. Voltei para o quarto. Tentava dormir, mas as dores no corpo todo não deixavam. Não conseguia posição confortável. Fui ao banheiro — urinar também doía. Lavei o rosto. Levei um susto ao perceber, pelo espelho, que os meus olhos estavam vermelhos. Aproximei o rosto, as veias dos olhos estavam repletas de sangue. Parecia que aqueles fininhos vasos iriam explodir com a quantidade de sangue que ali estava. Maldito choque! Voltei ao quarto. A imagem do nojento Dr. Alô me veio à mente. Aquele sorrisinho falso naqueles lábios finos, rosto arredondado, calvo, estatura mediana, meio parecido com aquele gordo e careca dos Três Patetas. Uma figura bem patética...
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 Foi o pior dia que eu passei, desde o internamento. Estava consciente de que a 
minha permanência não era somente para me entupirem de medicamentos. Estavam me tratando à base de eletrochoque! Eu, considerado um viciado em maconha... Era ridículo, inacreditável. Mas eu estava lá, tomando choques. E isso é fácil de ser comprovado. Basta tirarem uma chapa da minha cabeça. É possível identificar as aplicações. Elas causam uma pequena dilatação na constituição óssea do crânio. 
 As dores da aplicação iam diminuindo com o passar das horas. Eram contínuas. Na hora do jantar, eu já me acostumara a elas. Consegui jantar um pouco, sem vomitar. Chamada para os remédios. Porta fechando — o noturno dando boa-noite. 
 No sábado, as dores deram lugar a um pequeno mal-estar. Mas nada que incomodasse muito. Após os remédios, tomei o café da manhã, numa boa. Fomos para o pátio. 
— E aí, Austry, o que você achou de queimar os chifres? — perguntou Rogério. 
— São uns desgraçados... tinha que pegar aquele corno manso do Dr. Alô e aplicar 
choque naquele puto! 
— É, talvez nascesse cabelo naquela careca nojenta... — rimos, embora sabendo o terror que era a aplicação de tão famigerado tratamento. E alguns psiquiatras ousam dizer que a aplicação de eletrochoque não é usada há mais de trinta anos. Estamos presos nesse emaranhado que se tornou a nossa psiquiatria chamada moderna há mais de cinqüenta anos. Por eles nos dizerem uma coisa e fazerem outra. E cegamente aceitamos o que nos dizem, sem ao menos tentar analisar se há alguma coisa real e objetiva nisso. Somos umas marionetes em suas mãos. E, no vocabulário psiquiátrico, o mais dificil é encontra-los pronunciando algo que seja real e objetivo. Só trabalham com suposições: pode ser... tudo é provável... 
 Naquele sábado, teríamos a visita de um Pai-de-Santo, o Sr. Abib, presidente, ou sei lá o quê, da Federação Espírita do Paraná. Iria dar passes em todos nós. Este era seu nome verdadeiro, como também o nome do enfermeiro Marcelo, do paciente Fontana e do psiquiatra famigerado, Dr. Alô Guimarães.
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Todos nomes reais. Dos outros nomes não me recordo, mas os personagens também são reais. 
— Cara, tem que ter um jeito de sair dessa porra! 
— Toma cuidado. Se eles percebem que você está com essa idéia e se exaltando, você vai pra Tortulina... 
— Pô, Rogério! É só o que falta: eu provar agora essa droga de Tortulina. 
— Cara, você não vai gostar nadinha. O Zé Grandão vive sob efeito dessa injeção. 
— Cara, e ontem, o choque! Eu tava com um medo que nunca tinha sentido em minha 
vida. 
— Também tenho um pavor danado daquela porra. 
— Quando você começou a gritar com eles, eu pensei que iria desmaiar de medo. 
— Eu sempre reajo, mas não adianta. O Marcelo tem uma força do diabo. Me deu uma 
gravata, quando tentei passar por eles ontem, que até agora tá doendo... 
— Falar em dor, como dói a porra! Na hora eu não senti nada, mas depois tudo doía. Minha cabeça, parecia que alguém tinha quebrado alguma coisa nela. 
— Em mim o que mais dói é o peito, parece que alguém enfiou uns ganchos e tentou 
abri-lo. 
— Eles deveriam dar choques nesses goiabões cagados, e não na gente. 
— E quem garante que eles não estão desse jeito, se cagando, por causa desses choques? Desses medicamentos mal administrados? Desses desleixos de profissionais como esse Dr. Alô Guimarães, que simplesmente nos empilham aqui dentro e nos entopem de medicamentos? Quem são os responsáveis por eles estarem ali, naquele canto, reduzidos a verdadeiros mortos-vivos? A gente poderia fazer muitas perguntas. E as respostas — não seria tão difícil achá-las. Mas quem se preocupa com um monte de indivíduos que já foram até abandonados pelas famílias? A quem importa um monte 
de inúteis?
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 Um velhinho de cabelos brancos, gestos rápidos, simpático surgiu. Fizemos uma 
fila, lado a lado. Fez questão dos crônicos daquele canto. Rezou e passou a mão sobre cada um de nós. Não demorou muito ali conosco, tinha que dar os passes em outros pavilhões. O fator espiritual é um dado que merece maiores pesquisas por parte do profissional do setor psiquiátrico. Muitos acreditam que perturbações espirituais sejam, em grande parte, responsáveis por muitas das vítimas que ali se encontram internadas. E religiosos, como o Sr. Abib, médium conceituado em Curitiba, são sem dúvida defensores dessa hipótese. 
 E quem ali entrasse de supetão, teria, sem dúvida, essa impressão. A degradação 
dos malditos era tão visível e assustadora que eles só poderiam estar carregados de legiões de espíritos imundos, tal como lemos na Bíblia. 
 Marcelo, que acompanhava o Sr. Abib, ficou ali conosco no pátio. Falava com 
alguns dos internos. Ele, um negro de uns trinta e dois anos ou um pouco mais, de uns setenta e poucos quilos, alto, corpo atlético, feições fortes, boa aparência, nos tratava com ternura. Mas sabia ser durão. Era o chefe dos enfermeiros do pavilhão San Quentin. Era um enfermeiro nato, tinha o dom. Chegava a nós com a mesma facilidade se tivesse de nos imobilizar. Era respeitado e querido por todos nós e mesmo os indiferentes sentiam simpatia por ele. Com o tempo fui me tornando seu protegido dentro do San Quentin. Sentou-se conosco. 
— Austry, tá tudo bem? — perguntou de cócoras, à nossa frente. 
— Bem nada, Marcelo. Esse eletrochoque é uma tortura. 
— Mas não tem perigo nenhum, e é pra o seu bem. 
— Pois sim! — retrucou Rogério, em tom de deboche. 
— Talvez na próxima semana você vá para outro pavilhão.
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— Também! já estou beirando os seis meses aqui. 
— Mas o que interessa é que você já está bem. Você precisa ver quando ele chega 
aqui. Não reconhece ninguém, quer subir pelas paredes e sua igual a uma bica. 
— Mas de que adianta todo esse sacrifício, se daqui a uns dias ele está de volta? 
— Espera aí, Austry. Se saem daqui curados e depois voltam a se empapuçar de 
drogas lá fora, é porque vocês querem voltar para cá. 
— Não é bem assim, Marcelo. Quando eu chego aqui é natural que eu passe pela 
fissura da falta da cocaína. Suo, berro, quero subir pelas paredes, sem contar as ínguas que se espalham por todo o corpo. Mas isso é uma reação orgânica. O meu organismo mesmo faz a desintoxicação. Tá certo que as drogas que vocês me dão amenizam essa reação um pouco. Mas não são essas portas de remédios e nem o eletrochoque que irão me tirar do vício. 
— O quê, então? — perguntou Marcelo. 
— Só eu mesmo. 
— Como assim? — insisti. 
— Só se eu conseguir não colocar mais picada alguma em mim. 
— E por que você não faz isso? 
— Não é tão fácil assim, Marcelo. Lá fora, a oportunidade aparece. E se você não tiver bem de cabeça, infelizmente cede à tentação. 
— Que tentação, se você sai daqui desintoxicado? 
— Marcelo, se eu saísse daqui desintoxicado como vocês pensam que saio, não voltaria tantas vezes como eu tenho voltado. O lance é que, quando eu recebo alta desse médico, eu fico em casa me segurando para não sair à rua e cruzar com algum amigo que tenha o bagulho. Só a visão desse amigo já me coloca nervoso. Parece que aquilo que está adormecido dentro de mim desperta novamente. Começo a sentir os sintomas da falta da cocaína.
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— É como se a simples visão do amigo dele derrubasse todo esse chamado tratamento furado que vocês fazem aqui dentro — falei. 
— É, isso mesmo. É difícil de explicar, mas os sintomas voltam. O calafrio, a tremedeira, a coceira. E não dá para segurar. 
Você precisa do pico. E aí, você já sabe o resto. 
— Mas como é que agora você não está com esses sintomas? — perguntou Marcelo. 
— Porque tenho meus segredinhos — se entregou de bandeja Rogério. Lá dentro, tinha mocosado suas graminhas, que amigos traziam. 
— Rogério, você tá tomando pico aqui dentro?! 
— Qual é, Marcelo? Você acha que eu sou louco? — Quando ele não tinha cocaína, 
destilava um monte de comprimidos e se aplicava, me confessou mais tarde. 
— Vou mandar dar uma geral no teu quarto! 
— Pode mandar. Agora é bom você mandar dar uma olhada nos quartos dos pinguços. 
Sei que tem muito neguinho aí com garrafinha de Tatuzinho! 
— Vou mandar fazer já essa geral! — o enfermeiro saiu decidido. 
— Pode olhar meu quarto, meus bagulhos não estão lá. 
— Cara, você tem que tomar cuidado... se está com esses bagulhos... 
— Cuidado com quê, Austry! eles podem fazer o quê? me internar num hospício? 
Rimos. 
 Naquela tarde tudo correu normalmente. A ociosidade foi alterada por uma briga 
de explodir sangue, no canto dos malditos. Nesse grupo de esquecidos, a maioria é agressiva. Havia um que corria de um lado para outro — parecendo um foguetinho naquele vaivém: pára, vai, pára, vem. Tinha um nome esquisito, Stravinski, ou coisa parecida. Naquele sábado, o cara se estranhou com o Zê Grandão que, mesmo sob o efeito da Tortulina, era violento.
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Se pegaram de tal maneira que um quase arranca o nariz do outro. O Zé Grandão, bobão, deu um abraço de urso no Stravinski e o ergueu pela cintura. Arranhou e mordeu o nariz do Zê Grandão, deixando sua cara mais feia do que era. Para separa-los foi preciso convocar mais dois enfermeiros do interior do pavilhão. Uma briga de duas feras. Os enfermeiros dominaram o Zé Grandão com a ajuda de mais uns internos e o levaram para dentro do pavilhão. O Stravinski continuou no vaivém. 
 Stravinski, apelidado o Foguetinho, pelas suas corridas rápidas de um canto ao 
outro, era um psicopata altamente perigoso. Magro, alto e forte. Estava sempre metido em agressões com os outros crônicos. Mordia e arranhava com suas unhas grandes e sujas. Tinha também os dedos sujos de nicotina e queimados pelas xepas que catava. 
 O Tio, um crônico coroa já sem cabelos, tinha um problema na garganta, e vivia 
roncando como se quisesse tirar alguma coisa dela. Colocava aquela enorme língua para fora e massageava freneticamente a garganta. A noite, na cova imunda, que chamavam quarto, naquela estopa podre, com um cobertor fedorento, ele fazia uma gritaria dos diabos. Dizia que não agüentava de dores na garganta. Diziam que as dores eram psicológicas. 
 Pernambuco, com sua risada de hiena e os assoprões nas aberturas das portas, 
gostava dali. Era também um crônico irrecuperável. Ajudava os enfermeiros, varria, limpava, carregava as panelas. Tinha liberdade para sair do pavilhão. Nunca fugiria, iria morrer ali. O Pernambuco era pau para toda obra. Não parava de falar, falava direto, coisas desconexas e ria, como ria! Seus dedos também eram comidos pela nicotina das xepas. Quando lhe davam um cigarro, colocava uma das mãos na cintura, com um certo charme. Fumava saboreando cada tragada, com seus dedos finos, mas pretos de nicotina. Segurava o cigarro de maneira charmosa. Falava nada com nada. De repente, saía rindo — rindo como uma hiena. Parava em algum lugar e começava a conversar, mesmo que fosse com a parede.
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 Dedinho, outro crônico que vivia chupando o dedo e não largava nunca seu bonezinho, era pequeno e frágil. Era protegido por todos. 
 A rotina. Após o jantar, um pouco de televisão, comprimidos e cama. O dia seguinte seria outro dia de festa, melhor que aquele tédio. 
 Um dos maiores problemas que enfrentávamos era não ter nada o que fazer, só tomar medicamentos, comer e coçar saco. 
 A exceção era domingo. Hospício em festa. Euforia na malucada. Pernambuco de queixo fino, olhos esbugalhados, ri com eles. Sabiam que receberiam frutas, bolachas, doces e o mais importante — cigarros... 
 Domingo, festa. Os não malucos, menos eufóricos. Sabiam que junto com as 
guloseimas podiam vir as frustrações, empacotadas ou simplesmente jogadas. Não que não ficassem contentes. Sabiam que a decisão final era do médico todo-poderoso que tinha em suas mãos não somente suas vidas, mas o poder sobre suas mentes. O todo-poderoso! 
 Vinham familiares de outros lugares, cidades próximas ou longínquas. Traziam 
maçã, um pacotinho de bolacha — não tinham mais para trazer. O que importa é que vinham. Outros tinham o que trazer. Esses se isolavam com seus fidalgos, com seus olhares de superioridade. Os plebeus se misturavam, os fidalgos se isolavam. As divisões, lá fora, no jardim, são cultivadas. Do lado de dentro não existem classes. A mistura e o rótulo são uma coisa só, loucos. Loucos, fidalgos e plebeus, todos cagando, fedidos do mesmo jeito. O cheiro não dá para definir. 
 Domingo! Hospício em festa. Crônicos ou não, todos limpinhos — com roupas 
domingueiras. Parecia um grupo de crianças escolares que a professora vai levar para assistir a uma peça de teatro. Também era dia de banho. Esse sacrifício se impunha na quinta-feira para os que iriam receber visitas. Os crônicos que não têm visita não são incomodados: banho uma vez por mês, e olhe lá. Mas quando era o Marcelo que ficava encarregado de preparar a loucarada, ele os pegava a todos.
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Só se via crônico berrando, se escondendo para não tomar banho! Com ele, no entanto, não tinha papo, todo mundo para o chuveiro. Era divertido. Muitos dos esquecidos tinham piolhos. Marcelo fazia festa, raspava-lhes a cabeça e iodo neles! — pois alguns já tinham até muquirana sugando seu sangue através do couro cabeludo. 
 O almoço também era especial. Algum familiar podia ser curioso e perguntar: 
“Amorzinho de filhinho meu, a mamãe querida quer saber: o que vocês almoçaram hoje?” E eles poderiam responder: “Nós, mamãe querida, comemos arroz, feijão, maionese, salada, carne, galinha, frango, macarrão, feijão, arroz, maionese, salada, carne...” 
 Uma beleza! tudo era alegria nesses dias de visitas. Todos já estavam prontinhos 
e limpinhos às dez horas. As visitas eram às quinze horas. Acontecia de algum dos crônicos esquecer que não podia cagar naquela roupinha de domingo. E lá ia o enfermeiro, sacudo, dar outro banho e preparar outra roupinha de domingo. 
 Andavam mais rápido que o normal. Os não crônicos esperavam, lá no fundo, que tivessem trazido uma data para suas saídas. E alguns, com esperanças mais ousadas... demais de ousadas, superousadas de saírem naquele dia mesmo. Um milagre! Tudo parecia possível, por antecipação. Mas, no final, tudo se repetia como na quinta-feira passada. 
 A família vem hoje, poderá ver que já estou curado não sei do quê, mas estou. 
Pedir alta ao poderoso! — eles podem exigir isso. Estou melhor, estou são. Tenho que parecer calmo, atencioso. Provar que não preciso ficar aqui. Vou embora, Deus!... eu quero, estou melhor. Estou curado, vejam! 
 Tais pensamentos tomam conta dos alcoólatras e dos não abobados que se encontram internados. 
 Visitas. Era domingo. Hospício, por enquanto, em festa. Começam as cenas. Empolgados, os pacientes imploram. Os visitantes prometem. Os esnobes, com nariz empinadinho, se isolam.
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Para abaixar esses narizinhos, seria apenas necessário prendê-los ali por uma semana, convivendo com a escória. Aprenderiam a valorizar o ser humano. A família era a esnobe, o paciente já perdera essa pobreza de espírito. Seria bom ter entre nós esses tipinhos privilegiados que acham que o dinheiro e o status social de seus familiares lhes dão direitos. 
 As visitas se vão. Deixam muita frustração e guloseimas e o mais importante: cigarro. Alguns tiram suas fantasias, guardando-as para a próxima tentativa, na quinta-feira. 
 O pavilhão entra em baixa. As frustrações, angústias e tanta dor. O pavilhão se 
tornou pequeno. Aquela prisão e isolamento eram terríveis. Os internos não se deprimem por causa das visitas, e sim por estarem presos e dominados. Dominados para receberem um tratamento desleixado, que mais os maltrata do que cura. Essa prisão, isolamento serão necessários? Será que alguém deixa de fazer algo porque é proibido? O alcoólatra irá deixar da bebida por ser obrigado? Ou por se encontrar ali isolado? As estatísticas provam o contrário. Eles sempre voltam. Ninguém deixa um vício se realmente não quiser. Isola-lo, prendê-lo a setenta chaves, não adianta. 
 Nove horas da noite. Remédios na mão, todos para suas covas. O domingo acabou. Pensar na segunda-feira... — caralho!, é dia de choque. Levanto, ando pelo quarto escuro, tateio a parede em busca do interruptor, é fora, me lembro. A tortura pendendo em minha mente. Ando de um lado ao outro. Sufoco... Continuar na cama não consigo. Quarto escuro, luar pelo vitrô. Aquelas armações de ferro! Quero luz. Tateio a parede. Lembro — é lá fora. Ando, inconformado com o que terei de enfrentar amanhã. Sento. Fumo. Deito. Procuro o efeito dos soníferos, não acho. Horas e horas aterrorizando-me... sem conseguir dormir. Recorro às orações. Afasta de mim esse cálice, amanhã — livrai-me, Pai!!... 
 Socorro! alguém me ajude! — grito mentalmente. Choque amanhã. Choque amanhã. Tomara que não amanheça. Eu não vou tomar. Meu Deus! me ajude... porra!...
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 Esses choques iriam deixar seqüelas por anos e anos. Jamais esquecerei as noites angustiosas. 
 Consegui dormir. A muito custo. De manhã, o noturno espera impaciente. Vestir-me. A calça. Vou colocar um cinto. 
— Não ponha cinto! Deixe assim... — ordena o enfermeiro noturno. 
 Foi comigo ao banheiro. Urinei e escovei os dentes. Pegou a minha escova de dentes. Paramos em frente ao quarto, entre as duas salas. 
— Entra aí! — ordenou. 
— Não vou entrar, não! 
— Se você não entrar, eu vou chamar mais um enfermeiro e te colocamos lá dentro. 
 Entrei. Trancou a porta. Única diferença: eu já sabia o que era o eletrochoque. 
O desespero era maior. Aquele colchão de palha unida, sem expressão, nu, com listras largas em azul desbotado misturando-se com um branco encardido. De quantos gemidos agoniantes ele era testemunha? Sentia um desespero tão grande... não conseguia me controlar. Minha mente não obedecia. O pavor era mais forte. Ajoelhei-me na beirada da cama. Orando, implorava aos santos: “Meu Deus, fazei com que esse médico não chegue! Meu Jesus, minha Nossa Senhora, pelo amor de Deus!... eu não quero tomar choque. Minha Nossa Senhora! se a Senhora fizer com que esse médico não venha hoje, eu lambo todo o assoalho desse chão. Eu lambo como penitência, minha Nossa Senhora! fazei que ele não venha hoje, minha Mãezinha! fazei com que ele não venha... Eu lambo este chão!... Eu lambo!!...” 
 Meu terror era tanto, que de quatro, comecei a lamber o chão. Como penitência. 
Lambia. Lambia o chão. Minha língua ficou toda cheia de poeira — Senhora minha, 
Mãe Santíssima! fazei com que ele não venha hoje, eu engulo essa sujeira... eu engulo! 
Engoli tudo que estava na minha língua. E continuei a lamber o assoalho por várias vezes, implorando aos santos que fizessem com que aquele médico não aparecesse para a aplicação.
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Com a língua empoeirada, engolia toda aquela sujeira. E meu pavor aumentava. Os 
minutos eram infindáveis. Preso naquele quarto. Esperando o choque. Rezava e lambia o chão. Rezava, lambia e engolia a sujeira do chão. Desesperado, queria algo cortante... cortaria os meus pulsos! Faria, no desespero em que estava, qualquer coisa para não tomar choque. 
 Sentia-me um animal ferido e acuado, preso naquele quarto. Um garoto de dezessete anos, espinha na cara, barba nem pronunciada. Preso, esperando o choque! Um lugar que jamais sonhara conhecer. Preso! esperando o choque. Passando por pesadelos que fariam qualquer machão adulto ficar temeroso. Preso. Esperando o choque. Dizem que há trinta anos não usam mais eletrochoque na psiquiatria intitulada moderna. Preso. Esperando. O Choque. O que é que eu estou fazendo aqui dentro, então? Preso, esperando o eletrochoque! Esse eletrochoque é um terror, meu Deus! por que fazem isso? Preso, esperando o choque. Sua aplicação é a seco, à unha nos agarram e aplicam essa porra. Por que permitem que façam isso comigo? Preso, esperando o eletrochoque. O que eles dizem para os nossos familiares é uma coisa — queria ver meu pai aqui dentro: preso, esperando o eletrochoque. 
 Eu não queria passar novamente por aquele pesadelo. Estava no primeiro quarto, 
ao lado da enfermaria. Rogério estava em algum outro quarto. Minha limpeza bucal do assoalho de nada adiantou. Vozes no corredor. Aquele barulho de rodinhas. O médico chegou! Minha penitência de nada adiantou. O coração vai pular do meu peito. Minhas pernas. No canto, quero furar parede. Pavor, eu realmente! eu te conheço. Olhos no buraquinho da porta. Chave roda a fechadura. Falta de ar. Não consigo respirar. Entram. O administrador e o enfermeiro Luiz. 
— Tenha calma, não precisa ter medo! — o administrador.
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— Por que isso? Eu não preciso tomar choque. Eu não sou nenhum viciado. Por favor, não façam isso... 
— Não tenha medo! fique calmo que tudo vai sair bem — disse o administrador, fazendo-me deitar. 
 O medo provoca reações incontroláveis e inesperadas. Quando o administrador se preparava para imobilizar meu tórax, tive uma explosão. Empurrei-o de cima de mim e tentei levantar-me da cama. De imediato, o Luiz me deu uma gravata, por trás. 
— Calma, Austry não adianta reagir! vai ser pior para você — gritou Luiz, apertando meu pescoço; a cada tentativa minha de livrar-me daquele abraço, ele apertava mais. 
— Fique calmo, ele vai te soltar... mas você não vai reagir, tá certo? — falava manso o administrador. Eu e Luiz ajoelhados no chão, ele apertava o meu pescoço, o sangue começou a subir e esquentar a minha face. 
 Consegui, com dificuldade, fazer sim com a cabeça. Magro do jeito que eu era, o 
Luiz não devia ter muito trabalho para me segurar. Largou-me e fui deitado pelo administrador. Fechei os olhos. Borracha na boca. Senti o joelho no meu tórax, suas mãos — uma em cada ombro —, as pernas juntas e também forçadas para baixo. Passaram alguma coisa nas minhas têmporas. De olhos fechados, mordendo aquele tubo, escuto parte do meu gemido. 
 Vou ou não vou tomar choque? Estou sentado na cama. A porta está aberta. Levado para o pátio, deslizo até o chão. Posso ir para o quarto — não quis tomar café. 
Ânsia de vômito... reviro-me e viro-me na cama. Dor de cabeça, peito, corpo todo. Um mal-estar terrível. Fui novamente atropelado — fui violentado! 
 Segunda-feira, eu nunca gostei de segunda-feira... agora, mais um motivo. 
Almoçar? — nem pensar. Só os comprimidos, pedi também um analgésico. Pátio à tarde. Sentado num canto, tudo incomodava. No quarto, era horrível; no pátio, péssimo.
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Não achava um lugar, as dores eram muitas, tudo doía. Remédios. Café da tarde, só tomei a cevada com leite. Remédios, jantar. Consegui comer um pouco. No meu quarto, o barulho da TV incomodava. Ultima chamada, comprimidos e comprimidos. 
— Boa-noite, Austry! — o noturno fechando a porta. Amanhã não tem choque, graças a Deus. Dormi mais tranqüilo do que na noite anterior. Terça-feira, nada especial. Quarta-feira imitava a terça. Quinta-feira: novamente o hospício em festa! Na sexta-feira, o pesadelo, choque... Pedimos ao noturno para ficarmos no mesmo quarto, Rogério e eu. Colocamos mais uma cama. O enfermeiro, meio contrariado, permitiu. A espera a dois foi menos cruel. 
— O Marcelo me falou que esta é a última aplicação!... para eu não reagir... 
— Que bom, Rogério. E eu, quantas será que tenho ainda? 
— Pelo que eu sei, uma série é de doze aplicações. 
— Esse vai ser o meu terceiro. 
— É foda, Don Austry! 
 Rogério estava até feliz, era sua última aplicação. Sei lá quantos choques esse maluco desse médico iria me aplicar. Deitados, cada um em sua cama. 
— Austry, como você está fazendo com os remédios? 
— Os comprimidos? Eu estou tomando. 
— Cara, não faça isso! Jogue-os fora. Não tome, você vai ficar sedado! 
 Eu já estava sentindo meus movimentos mais lentos, pois estava tomando cerca de quinze comprimidos diários. 
— Cara, pra segurar isso aqui é melhor ficar sedado mesmo... porque, de cara limpa, não dá. 
— Você é quem sabe. Já fiquei sedado e demorei mais tempo para receber alta. 
— Você acredita que, na segunda-feira, eu lambi o assoalho todo? 
— Você está louco, por quê? — rindo.
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— E não foi só uma vez. Me deu um desespero, comecei a rezar e como penitência comecei a lamber o assoalho! Cara! me dá um medo da porra desse choque. 
— Eu sei como é. Também tenho pavor dessa droga. Já fiz também cada loucura, Austry. A hora que eles chegarem, deixe-me ser o primeiro a tomar o choque. 
— Por quê? 
— Porque se eu vir você tomar, não vou conseguir ficar numa boa. Vou reagir e, de repente, eles vão querer me aplicar mais choque, sei lá o que eles podem fazer com a gente!? 
— Tá legal, nunca vi ninguém tomar essa porra. Vou ver você. 
 Rogério também tinha muito medo. De certa forma era um consolo. Meu medo, ele sentia igual. Continuamos os papos. Quando escutamos as rodinhas, a expressão do 
rosto do Rogério se transformou. E a minha também, com certeza. 
— Calma, Rogério, também estou com medo. 
 Senti que ele não ia se controlar. Nervoso, começou a estalar os dedos. Seu rosto aluado estava tenso, seu bigode ralo mexia. Sua respiração também era difícil. Mas ele não podia reagir, era a sua última aplicação. Nervoso mais que ele, tentei acalmá-lo. 
— Você vai primeiro. Não reaja, não reaja, cara! É a sua última aplicação. Não reaja, cara... Não... 
— Cala a boca... Porra! — levantou-se da cama, ficou em pé encarando a porta. 
Tentei levantar também, as minhas pernas não tinham força pra isso. Entrou o Marcelo. 
— Por que os dois estão juntos? — perguntou o administrador. 
— Eles preferiram ficar juntos! — respondeu Marcelo, sentindo a reprovação do administrador. 
— Porra, Marcelo, este é o último mesmo? — Rogério mexendo nos dedos, agoniado e tremendo, eu sentado na cama, desesperado, paralisado, observava.
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— É o último, Rogério. Agora, deita! que tudo vai ficar bem... 
 Deitou de barriga para cima, cabeça para a porta. Eu, tenso, observava cada movimento. O administrador dobrou a perna e a colocou no tórax. Marcelo colocou o tubo na boca do Rogério. Molhou os dedos num frasco — era aquela coisa meio gordurosa. Passou os dedos de um lado ao outro nas têmporas do Rogério. O Dr. Alô parou um pouco para dentro da porta, que permanecia aberta. Na mesinha com rodinhas, uma maleta preta de onde saíam fios de luzes que terminavam em dois tubos brancos — pareciam de gesso e tinham cerca de 20 cm cada um. O Dr. Alô segurava um tubo daquele em cada mão. Ele dobrou o tórax, ficando com a cabeça em cima da do Rogério, examinando não sei o quê. Recuou, endireitando o seu corpo. Deu um pequeno sinal: os imobilizadores forçaram mais o corpo do imobilizado para baixo. O Dr. Alô encostou os dois tubos nas têmporas do Rogério por apenas pouquíssimos segundos. A convulsão do corpo foi tão violenta que ele conseguiu erguer o administrador uns 10 cm, mais ou menos. Rogério desfaleceu, soltando o tubo de sua boca e babando. Seu longo gemido permaneceu em meu ouvido. Saí num pique só daquele quarto de tortura. 
 Corri como um desesperado para a sala de jantar dos esquecidos. A porta que dava para o pátio estava trancada. Cercado pelos enfermeiros. Até o do pátio entrou na minha captura. 
— Só morto vocês irão me aplicar essa droga! — gritei, correndo e parando entre as mesas. Eram bancos grandes. Não eram cadeiras, uma pena! 
— Austry, não adianta você reagir! é pior para você. 
— Marcelo! não vou tomar porra nenhuma de choque! 
— Viu por que não quero que coloquem dois juntos para o choque? — disse o administrador, chamando a atenção do Marcelo. 
 Nisso, Henrique, o enfermeiro guardião que se revezava com Luiz na guarda do pátio, pulou em cima de mim e, de imediato, imobilizou-me com a tradicional gravata no pescoço.
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Meio arrastado fui levado para o quarto. Gritos e pedidos para que não me fizessem aquilo. Só escutei os meus gemidos. Currado novamente. 
 Naquele sábado, levantei ainda sentindo os reflexos da aplicação do choque. Coisa que não incomodava. Esperançoso... amanhã eu saio dessa droga de inferno! 
Domingo, já poderia receber visitas. Vou relatar tudo aos meus velhos. Eles vão ver, vão processar esse filho-da-puta de psiquiatra. Eles não devem saber que estou tomando choque. Vão ter que processar esse médico do caralho! Amanhã eles vão me tirar daqui! 
 Esperávamos a visita do Sr. Abib. Ele ia aliviar o astral espiritual ali dentro que, sem dúvidas, estava repleto de Exus da pesada. Aguardávamos até com uma certa ansiedade. Talvez porque tivéssemos grande necessidade de contatos com pessoas de fora. 
 Eu e o Rogério ficávamos sempre juntos. Éramos os únicos internados por drogas. Para todos, éramos os viciados. Eu já não tinha mais saco para tentar explicar-lhes que não era dependente de droga alguma. 
 Estoura outra confusão no canto dos malditos. Talvez os Exus estivessem perturbando aqueles infelizes, pois sentiam que aguardávamos o Sr. Abib. 
 A confusão foi feia, envolvendo como sempre o Zé Grandão e o Stravinski. Foi 
necessário o guardião pedir ajuda aos outros enfermeiros. Estavam rolando aos arranhões e dentadas. Entraram no pátio o Marcelo e um outro negro de branco. Apartaram a confusão. Henrique, o enfermeiro guardião, era forte e alto, pegador de touro bravo, peão mesmo. Conseguiram imobilizar com muito esforço o Zê Grandão e levá-lo para dentro do pavilhão. 
— E agora vão aplicar o Haloperidol? 
— Não, agora acho que é o Triperidol.
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— A Tortulina fodida... — comentei com Rogério. 
— Só... 
 Levaram o Zé Grandão com auxílio daquele enfermeiro magro, alto e negro. 
Simpático até demais — era bicha. Gente fina, o seu primeiro nome era Josias. Bastante respeitado pelos outros colegas, era profissional. 
 Os enfermeiros de instituições psiquiátricas deveriam ser bem preparados para 
essa função tão dolorosa e ingrata. Em sua grande maioria, no entanto, não são. Tratar de pessoas em estado degradante como aqueles que estavam ali não é fácil. E além desse preparo especial, deveriam ter também o dom da enfermagem. Quando não têm, não passam de carrascos vestidos de branco. 
 Recebemos os passes do Sr. Abib. Logo depois entramos para o almoço, comprimidos e tudo mais. Isso era sagrado, as chamadas para as drogas não falhavam. 
 Ao entrar no pavilhão, chegava-se direto à sala que poderíamos também apelidar de sala dos malditos. Quem raciocina e tem estômago não conseguiria comer um prato de comida naquela sala. As companhias de almoço eram crônicos que defecam no banco. E, com as mãos sujas de merda, pegavam os alimentos e os levavam à boca. Babando e misturando as fezes com arroz e feijão, riam, de boca cheia. Por mais que os enfermeiros cuidassem para que os crônicos não evacuassem por ali, ou que se sentassem sujos à mesa, não dava para controla-los, pois eram muitos. Roubavam também a comida uns dos outros, aos gritos. Lambuzavam-se de gordura, misturavam com suas fezes. Sem mencionar o mau cheiro. 
 Marcelo dava de comer ao Zé Grandão. Pacientemente, com uma colher, enfiava a comida em sua boca. Ele estava todo retorcido, os olhos esbugalhados e sua cabeça balançava de um lado ao outro. Suas mãos e dedos estavam repuxados, como se estivessem quebrados. Era de dar dó o efeito dessa Tortulina...
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Zé Grandão, com todo aquele tamanho, um touro bem engordado, não conseguia levar 
a colher à boca. 
 Fiquei ali olhando o Marcelo terminar de alimenta-lo. Depois, com a ajuda do Henrique, levaram-no meio arrastado, pois não conseguia nem andar, para o fundo maldito daquele pavilhão também maldito. Fui até lá. Colocaram-no num quarto imundo. Não consegui entrar por causa do mau cheiro. Como o outro que havia visto antes, aquele fundo do pavilhão era pior que um chiqueiro. Da porta, olhava-o com dó. Estenderam-no numa estopa podre. Um cobertor, imundo, cobriu-o. Ali apodrecia um touro, um animal, uma fera — ou um ser humano que deteriorava junto com suas fezes? 
 Tomei o café da manhã, junto com as primeiras doses de comprimidos. Domingo, o hospício estava em festa e eu também. Eu também teria visitas. 
— Se Deus quiser, hoje à tarde, estarei longe desse inferno esquecido por Deus, onde o Diabo é dono e senhor. Meus velhos vão me tirar daqui. 
 Após o café, os preparativos começaram. Tomei banho. Era dia de banho, já tinha relaxado. O meu desleixo quanto à higiene corporal devia ser efeito de tantos 
comprimidos. Fazia tempo que meu corpo não via água... que delícia! tudo estava bom, estava eufórico, tinha visitas... Cruzando com o Pernambuco pelo corredor, dei-lhe cigarros. Ele não tinha pedido. A hiena nem agradeceu, saiu rindo, pouco importava... não ia mais escutar essa risada estridente. 
 No quarto, vestindo minha roupinha de domingo, percebi que meus movimentos 
estavam um tanto lentos. Estava difícil abotoar a camisa. Demorei para me vestir. Eram os tais efeitos a que o Rogério se referia, me enchendo o saco. Eu estava ficando sedado, ou já estava — não tinha muita certeza. Pouco importava. Esse sofrimento estava por terminar. Assim que falasse com meus velhos, sumiria daquele lugar. 
 Sair dali, ir embora. Poder respirar ar puro, ver pessoas, andar pela cidade sem rumo, sem destino, será maravilhoso.
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Comer x-salada e uma coca. Dá-se o verdadeiro valor à liberdade quando não se tem. Refletia assim, enquanto vestia minha roupa de domingo, preparada no dia anterior. 
 Todos sentiam que aquele era um dia especial. Mesmo os irrecuperáveis como o 
Pernambuco, Stravinski, Dedinho, Tio e o Zé Grandão, que devia estar agonizando em sua toca fedorenta com os efeitos do Triperidol. Rogério me disse que o efeito da droga maldita pode durar até mais de quatro dias. Mas o Zé Grandão sabia, de alguma maneira, que hoje era um dia especial. A percepção sobrevivia à destruição das mentes alienadas. Eles sentiam, eram de alguma maneira receptivos. E nas suas fantasias de alucinações, filha-da-puta de psiquiatra algum poderia atingi-lo. Podiam maltratar seus corpos com os efeitos dos milhares de drogas, mas suas mentes jamais seriam novamente tocadas. Pois elas ergueram uma barreira intransponível a qualquer droga que o homem tenha criado. Poderiam destruí-los de vez, mas não mais traze-los à realidade, pois onde estavam, estavam seguros. 
 Talvez nos seus refúgios e catatonismos eles se sentissem respeitados, amados, 
protegidos e confiantes. Viviam, de certa maneira, uns com os outros — os crônicos — numa comunidade. E dentro dela, eram seres humanos... loucos, sim, mas que importava agora que seus cérebros tenham virado pó? 
 O almoço, no capricho. O café da tarde servido mais cedo. Os que deveriam ser 
impressionados chegavam às três da tarde. As chamadas começaram. O enfermeiro ficou na porta que dava saída para o jardim, direto do pátio. Essa porta só era aberta nos dias de visita. Evitava que alguém entrasse no pavilhão. 
 Chamava os pacientes de acordo com os familiares que estavam chegando. Recebiam o interno, procuravam um espaço no belo cenário ajardinado. Sanatório muito bonito... lá fora!... 
— Austry, visitas.
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 Essas palavras soaram tão fortes, que eu não sabia se ria ou se chorava. Saí receoso. Todos ali estavam, só sorrisos — faltava espaço nos rostos... Pai, mãe, a irmã e o irmão, que eram filhos só do meu pai. Com sorrisos largos fomos também procurar um lugar naquele jardim do Éden. O jardim realmente era bonito, muito bem cuidado. Sentado num dos bancos, pintadinho de branco — só faltava a bandinha da vovó — fui direto ao assunto: 
— Quero que vocês me tirem daqui, hoje! 
— Como você está bonito, meu filho. Engordou, está corado, você está muito bonito, meu filho. — Eu já tinha escutado essas palavras antes, da boca do Rogério. Porra! a farsa da engorda funcionava. 
— Mãe, tudo isso aqui é uma grande farsa. Eles nos entopem de remédios para abrir o apetite, comemos igual a leões. Nos engordam como porcada num chiqueiro. Se vocês quiserem, eu chamo o meu amigo. Ele vai lhes explicar melhor o que é tudo isso aqui. 
— Não... não precisa chamar ninguém! — disse o pai. 
— Mas você está bem mais forte — fala o irmão. 
— Vocês só estão vendo o meu lado físico. Estão achando que o tratamento aqui é 
maravilhoso. Tudo isso é uma grande farsa, gente! Aqui as coisas funcionam de uma maneira diferente dessas que eles fazem questão de mostrar. Por que vocês acham que não é permitido entrar lá dentro do pavilhão? Porque lá dentro está cheio de caras se cagando! É com esses internos que passamos o dia. No meio de pessoas cagadas que, se você vacilar, mano, te arrancam a cabeça fora — falei ainda calmo. Os efeitos dos comprimidos estavam me ajudando. 
— Mas você tem que ter paciência. Esse tratamento é para o teu bem — continuou o 
irmão. 
— Paciência! porque não é você que está lá dentro. Trancado como um criminoso, com aquela gente cagada ao teu lado. Aqui fora é tudo bonitinho e limpinho, faz parte do jogo sujo deles. Será que vocês não enxergam essa tremenda farsa?
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— Calma, não adianta você ficar nervoso. Nós o trouxemos aqui para você se curar... 
— Curar, curar de que pai? 
— Do teu vício de fumar maconha. 
— Do meu vício de fumar maconha? Eu não sou viciado em droga nenhuma! E outra: 
maconha não causa dependência orgânica nenhuma, é tudo papo furado. 
— É o que você diz. Maconha é uma droga que vicia e mata. Os jornais estão aí, a toda hora. Eu não quero que meu filho vire manchete de jornal. 
 Não adiantava continuar nessa linha. Estava percebendo o terreno. O meu objetivo era sensibiliza-los e provar que fora um erro terem me internado. E não provar 
se a maconha vicia ou não. Todos ficaram em silêncio por uns segundos. 
— Ah! que lugar mais lindo.., esse jardim dá uma paz! — exclamou minha irmã. 
— Estão me aplicando choque! — bombardeei. 
— O Dr. Alô Guimarães é um dos melhores psiquiatras do Paraná. Se não me engano, ele tem até livros publicados. Tudo que ele fizer é para o teu bem, Austry! — disse meu irmão, com mais de dez anos de diferença da minha idade, conselheiro da família. 
— Escuta aqui, Zé Luiz... Zeca! vocês parecem que já vieram preparados para as minhas reclamações. Vocês não me dão um voto de crédito. Esse doutorzinho que você diz ser tão grande e poderoso nem sequer fez um exame para ver se sou viciado ou não. Está somente me enchendo de comprimidos e me dando eletrochoque. Ele deve ter uma bola de cristal, pois nem me examinou! 
— Esse médico tem mais de quarenta anos de profissão. Com o que falamos para ele de você, já sabe o tipo de tratamento que vai aplicar. Ele é muito experiente e competente. 
— Meu irmão, se esse doutorzinho fosse um décimo de tudo isso que você falou dele, eu não estaria aqui dentro. Ele não me fez exame nenhum para ver se tenho dependência de droga alguma.
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Simplesmente manda me encher de barbitúricos e me aplica choque. 
— O que é barbitúrico? 
— São drogas, irmã, drogas. Estão me enchendo de drogas! É só isso que eles estão me fazendo... me enchendo de drogas! 
— Drogas não... medicamentos! drogas você tomava lá fora. Aqui eles estão tratando você, seu moleque mal-agradecido! — gritou papai. 
— Vamos ficar calmos, assim não dá! Eu já não estou agüentando mais — disse minha 
mãe. 
— Mas como isso aqui é bonito. Deve ter muitas frutas nessas árvores. Dá vontade 
de ficar aqui, nessa paz... — falou minha irmã outra vez, tentando acalmar os ânimos. 
— Por que você não fica no meu lugar, já que você gostou tanto? 
— Ela não precisa, não é maconheira! — retruca meu pai. 
— Vamos parar! Eu já não agüento mais — diz mamãe, chorando. 
— A senhora iria chorar mais se tivesse que tomar eletrochoque. É o maior terror aqui dentro. Isso aqui é o inferno! E o pior de tudo é esse eletrochoque. Pode deixar o cara bobão para o resto da vida. É!... a senhora sabia? Ficar assim, cagando e babando. Sabia, mãezinha? Ficar babando e cagando em si mesmo... — eu sabia ser sádico quando queria. 
— Você quer parar com isso? seu moleque atrevido. Você sabia que não foi fácil interná-lo? Tive que colocar você como dependente da Lurdes, no INPS, e esperamos um bom tempo para conseguir uma vaga. — Meu pai sobrevivia então como vendedor, fazia bicos. 
— Antes vocês não tivessem conseguido essa tão esperada vaga! Eu só vou pedir uma coisa para vocês: me tirem daqui o quanto antes!... pois esses eletrochoques podem me deixar bobão.
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E outra, se vocês não me tirarem daqui, eu vou fazer qualquer merda... eu me corto, corto os pulsos! 
— Os pulsos são seus. O que eu posso fazer é falar com o Dr. Alô para não lhe aplicar eletrochoque — concluiu meu pai. 
 A visita continuou — mais algumas discussões. Muito prometeram: iriam falar com o psiquiatra. E naquela semana providenciariam a minha alta com o todo-poderoso. 
O que eu tinha certeza era de que eles iriam falar com o médico. Prometeram. Recolhido ao pavilhão, carregado de frutas, doces e cigarros, sentia-me arrasado. Não os tinha convencido da grande farsa que era tudo isso, de que não passávamos de animais para engorda, e de que o objetivo dos que diziam tratar de nós era somente impressionar o comprador. Éramos, ali dentro, um bando em engorda. Os compradores eram eles, os familiares que nos viam gordinhos, bochechudinhos, fortes e coradinhos. Para eles o tratamento estava sendo maravilhoso. 
 Caso se indagasse sobre isso a algum psiquiatra, logicamente ele desmentiria esse fato. Nunca iria admitir que a realidade era essa. Porcada na engorda! Eis o chamado tratamento eficiente, dado dentro de todas as instituições do gênero, umas mais organizadas, outras mais desleixadas. Todas uns chiqueiros. 
 Só que, em algumas, a porcada não engorda. 
 Na manhã de segunda-feira, fui levado ao quarto de choque. Com tranqüilidade, 
pois meu pai prometeu que iria falar com o todo-poderoso. Os enfermeiros não deviam estar sabendo ainda que os meus choques seriam suspensos. Mas o médico poderia tê-los avisado. Por que eu estava preso no quarto de choque? Meu pai garantiu. Deve ser porque é cedo ainda. Vão me tirar logo desse quarto. Os pensamentos começaram a me aterrorizar. A dúvida... Mas meu pai prometeu! Uma certa confiança. Naquele quarto o tempo voava, e eles não vinham me tirar. Barulho de vozes, olhos no buraco da porta, chave abrindo. Fui para a porta, certo que tudo já estava resolvido. Vão me soltar.
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— Oh... oh, Austry, espera aí — empurra o Marcelo. 
— Meu pai falou que ia suspender os choques. Ele falou com o Dr. Alô. 
— Não falou não, e você tem aplicação! 
— Mas ele prometeu. Ele não falou com o senhor? — perguntei ao Dr. Terror, que só ria, com um sorrisinho sádico nos lábios, segurando os tubos nas mãos. 
— Ele deve vir hoje. Agora deite, Austry! — diz Marcelo. 
— Meu pai, desgraçado! não veio e nem virá falar com esse sádico... não reagi, não adiantava mesmo. Desolado, sem esperança e magoado, deitei. A imobilização de sempre, escuto parte do meu gemido. 
 Segunda-feira, o mesmo martírio, dores, vômitos e até diarréia, o que não tinha 
acontecido nos outros dias de aplicação. Na terça-feira, levantei-me mal-humorado, revoltado com minha família. Os crônicos me irritavam com suas mendicâncias, implorando cigarros. Queria brigar, estava de saco cheio de tudo aquilo, agitado e impaciente com todos. Marcelo chegou ao pátio, convidou-me a entrar no pavilhão. No quarto que era a enfermaria, preparou uma injeção pequena e incolor. Aplicou no músculo, dizendo que era um fortificante, ou sei lá o quê... Estava muito irritado com tudo. 
 Já de volta ao pátio, andava de um lado para o outro. De repente meu maxilar 
inferior começou a repuxar, doendo. Não conseguia faze-lo parar de ir para o lado esquerdo. Contorciam-se também os dedos, ínguas e cãibras repuxavam os nervos em vários lugares. O pescoço estava dolorido como se eu estivesse com torcicolo. Aquele veado do Marcelo!... me aplicou uma Tortulina! ... 
 Tudo estava se contorcendo em meu corpo. Às vezes era só o pescoço, depois o maxilar, em seguida as mãos. De repente, tudo ao mesmo tempo. O pescoço endurecia, o maxilar repuxava para o lado esquerdo, entortando toda a minha boca. Fui falar com o cão de guarda.
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Não conseguia falar com minha boca torta. Ele observava os efeitos e ria. Mais nervoso eu ficava e mais aquela droga repuxava os meus nervos. Nada conseguia com o cão fantasiado de enfermeiro. Sentei num canto curtindo as ínguas e cãibras que dançavam no meu corpo. Causavam dores, e violentas, como se as juntas fossem romper. 
 Rogério veio em meu socorro. Deu-me um pedaço de madeira para morder. Com força, mordia, tentando a todo custo fazer o maxilar parar de repuxar. As juntas do maxilar estavam muito doloridas, como se fossem quebrar. Como doía! 
 Com o pedaço de madeira na boca, fui dormir. Sentia os repuxões em vários nervos do meu corpo. As refeições do dia, tinha feito com dificuldades. O controle das 
mãos se tornara impossível. Parecia um dos crônicos, babando comida em cima da roupa. Agora, para dormir, sentia o maxilar ainda descontrolado. 
 Os dias foram passando... Compridos e mais compridos... Até ficar altamente sedado. 
 Nunca havia tomado tantos comprimidos em minha vida. Fiquei tão impregnado que não conseguia desabotoar um botão de camisa. Os choques foram se sucedendo. Sem saber quando ia sair. Visitas nos dias de visitas. Meu pai não faltava. Minha mãe não vinha, não suportava me ver lá dentro. 
 Indiferença tomando conta do meu ser. Sedado, eu não tinha mais vontade própria. No pátio, sentava e olhava para um ponto qualquer, por horas e horas. Sentia-me leve, flutuando. Os dias passando... Os comprimidos... eu os tomava. Os choques eu os supria automaticamente. Não me perturbavam mais. Nada ali dentro me perturbava mais. Engordava, forte e bonito... 
 Rogério foi transferido ou foi embora. Eu estava indiferente a tudo. Só minhas 
necessidades básicas importavam: fumar, comer, cagar, dormir... era o suficiente. Trinta... quarenta dias ali dentro! Acostumei-me à rotina ociosa. Não importava. Comprimidos. Mais comprimidos. Os choques cessaram — depois de cinqüenta dias... não sei. Flutuava, entrando no ostracismo.
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A família toda, papai, mamãe e irmãos, vieram para uma visita. Assustaram-se com o autômato que encontraram. O médico psiquiatra havia suspendido, ou terminado, a série de eletrochoques. Meus familiares pediram para dar um tempo com o choque. E talvez por isso eu estivesse assim tão desligadinho. Mas que eu estava gordo, forte e bonito, isso estava! 
 Já haviam se passado sessenta, setenta dias, eu não sei. Novos internos chegavam. Camargo, o alcoólatra, também foi embora. Como ele, o Fontana e o médico clínico. Tudo acontecia lento à minha volta. Como se eu sentasse na frente de uma televisão e assistisse a um filme em câmera lenta. Via tudo acontecer mas não tinha forças e nem vontade de participar. Já não tinha mais vontade de sair dali. Folha seca em meus sentidos, indiferença geral, apenas minhas necessidades satisfeitas. 
 Depois oitenta, noventa dias, não sei, não me lembro... Comprimidos e comprimidos. Meus parentes vinham, não todos, meu pai, sempre. Eram horríveis as horas que passava com eles no jardim. Estranhos, eles me incomodavam, queria voltar logo para dentro do pavilhão. Lá era meu lugar. Gostava dali. 
 Comprimidos e comprimidos. Os choques recomeçaram. Não me importava mais com eles. No quarto de choque, sentado na cama... assim ficava até abrirem a porta. Deitava-me, ouvia meu gemido. Dores, pátio, cama. No dia seguinte, sentado num canto qualquer, olhava um ponto horas e horas. 
 Os novatos já me chamavam de crônico. Pouco me importava, tinha cigarros. Os do canto não me repudiavam mais. Até já vinham pegar os meus cigarros. As vezes, aos berros, conseguia afastá-los. Mas sempre voltavam. Minha vontade não existia mais. Não sentia nada. Era como uma folha seca. Fazia tudo que me mandavam. “Deita, Austry!” — eu deitava. “Pula, Austry!” — eu pulava. 
 Sentimento algum era definido. Apenas um, o medo, medo de estranhos... de me machucarem. Nas brigas de pátio, eu corria para um canto, apavorado. Os choques continuavam. Os comprimidos diminuíram.
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Tudo passava lentamente. Percebia o que acontecia, mas não participava. Avançavam os crônicos sobre uma carteira de cigarros, não conseguia reagir. De goiaba, os novatos já me chamavam. 
 Os dias passando, mais de noventa dias, não sei... naquele exemplo de instituição psiquiátrica — Sanatório Bom Retiro —, o melhor do Paraná ou do Brasil... aos cuidados do catedrático, professor em universidades na área de psiquiatria, o senhor doutor Alô Guimarães, o melhor psiquiatra do Paraná ou do Brasil... deixou-me escorregando nos cantos, querendo esconder-me dentro do cimento. Com medo de pessoas estranhas. Na porta de onde não se volta — um crônico... assim os novatos me chamavam. Estava no ponto. Minha família, desesperada com minha situação atual. Pressão em cima do competente psiquiatra. Prometia melhoras. Os dias passavam. Eu um goiaba! assim os novatos continuavam a me chamar. Prometia melhoras, o todo- poderoso. Mas não convencia. Exigiram minha alta: contra sua recomendação por escrito, ele, o todo-poderoso, a concedeu.
Capítulo 4
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EM CASA, TODAS AS ATENÇÕES eram para mim. Parentes, vizinhos, amigos da família vinham matar a curiosidade. Recém-saído do hospício. Não me incomodavam suas curiosidades, sim suas presenças. Ficava o mínimo com as visitas. Meu quarto era 
minha segurança. 
 Uma folha seca, sem vontade. Queria sempre estar só. Isolar-me de todos, meus 
pais, visitas. Forçavam a conversa. Tinha dificuldades para entender o que me queriam dizer. Deixava-os sem respostas. Trancava-me no quarto. Sentia-me diferente. Não queria ver ninguém. Todos me incomodavam. Só no meu quarto. Esconder-me de mim mesmo. Meu quarto era meu esconderijo. Não era um bom esconderijo. A casa dos meus pais era de madeira, ouvia-se tudo. O quarto permanecia na penumbra. No escuro, à noite. Não queria ver ninguém. 
 Meus familiares tudo faziam para me tirar daquele quarto. Recusava-me a sair. Os dias passavam, eu trancado em meu quarto. Minha mãe jogou a chave fora. Não 
tinha importância. Quando eles saíam para ir a algum lugar, me sentia bem. Trancava toda a casa e, na penumbra, assistia à televisão, bem baixinho — pois poderia chegar alguém. Quando chegavam, sabiam que eu estava trancado em casa. Batiam, chamavam meu nome, insistiam. De cócoras, eu olhava pelas frestas da porta de entrada. Não abria, não queria ver ninguém nem ser visto. Fugia das pessoas, elas me davam medo, me inspiravam receios que eu não conseguia entender.
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Eram indiferentes, mas me incomodavam. Não me sentia bem na frente de ninguém. Queria somente ficar isolado em meu quarto. 
 Comecei a comer dentro do quarto. Estar à mesa, com as outras pessoas, não me agradava. A TV foi colocada no meu quarto — minha única distração. 
 Os comentários na Vila Esperança eram unânimes: “O filho da dona Maria está louco, não sai do quarto nem pra ir ao banheiro — viram só o que a maconha faz? Deixou o rapaz louco.” 
 Tudo era indiferente. Os comentários não me atingiam. Mas atingiam meus 
familiares. A curiosidade, com os dias, foi diminuindo. Os parentes pareciam não existir mais. A situação estava difícil para minha família. 
 Quase dois meses. Solicitada uma reunião da cúpula do clã dos Buenos, meu irmão e minha irmã foram chamados, não moravam conosco. Entraram em meu quarto, um de cada vez. 
— Você quer voltar para o sanatório? 
Eu vivia pedindo para voltar. 
 O que eles deveriam ter feito quando me levaram da primeira vez, estavam fazendo agora. Minha resposta foi positiva: 
— Eu quero ir para o sanatório. 
Queria sim, e muito, voltar para o sanatório. Lá era o meu lugar, um esconderijo perfeito para mim — um louco. Onde ninguém iria cobrar nada: que eu era jovem, tinha que viver... que não podia ficar fedendo dentro do meu quarto. Lá ninguém se importava com ninguém. 
 Havia me acostumado com aquele lugar. O Pernambuco, o que tinha risada de hiena, não sairia do sanatório. Só se colocassem fogo dentro do nosso pavilhão. Pois o 
Pernambuco podia ser louco, mas não era bobo. 
 Queria mesmo era voltar para o meu pavilhão. Sentia que lá era o meu lugar. Não queria ser cobrado, e todos, ali, queriam que eu fizesse alguma coisa.
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 E a cada dia, mais e mais estava me fechando em mim mesmo, O ostracismo, 
suavemente, estava me dominando. Como uma chama forte e definitiva, esta era a única coisa que eu sentia, indiferença a tudo. Sentia sim medo, mas mesmo a isso eu estava ficando indiferente. Ficar apenas sentado em algum lugar olhando um ponto qualquer. Isso era suficiente. 
 A recepção era o Marcelo. Recolheu-me a um dos quartos, entre duas salas. Em frente aos quartos de choque, me instalou. Estava onde deveria estar. 
 Alguns crônicos me rodearam, indo direto aos meus cigarros. Sentia-me bem, 
estava entre iguais. Ninguém me cobrava nem criticava. Cada qual com seus problemas e seu próprio mundo. Eu também estava criando o meu próprio mundo. Entendia, agora, os que ficavam no canto dos malditos. Fugiram das cobranças, das satisfações, das obrigações, da normalidade. O todo era eles, o ponto sobre o qual tudo girava. Intocáveis frente a tudo e a todos. Não se machucavam mais. 
 Eu não queria ser machucado. Como um bloqueio mental, uma autodefesa, só 
pensava: “chega de sofrer”. O que poderia ser chamado de ostracismo, ou coisa parecida, chamava-me: “venha, venha que estará protegido, nada mais o atingirá”. Entregava-me suavemente a esta autodefesa de minha mente: não vou mais sofrer. Como num acidente, quando a dor é muito forte, a mente anestesia o corpo, assim, talvez, o grande pavor que tinha nas primeiras aplicações de eletrochoque fosse o elo para meu impulso de envolver-me num invólucro, protegendo-me do sofrimento. Este 
elo, na minha mente, levava-me a buscar um manto para proteger-me da violência... nada mais me atingiria, nem mesmo o eletrochoque... me fecharia a tudo. 
 A falta de sentimentos já me dominava. Poderia ver minha mãe morrendo, não faria nada e nem sentiria nada. Não sentia falta de ninguém. Nada conseguia me comover. A chance de fechar-me de vez para o mundo parecia tão suave que eu já estava flutuando.
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Uma força, que eu não queria controlar, envolvia-me suavemente. 
 As sessões de eletrochoque recomeçaram. Mas como nas últimas aplicações, eu não tinha mais pavor — me eram indiferentes. Tudo acontecia, via tudo, não sentia nada. Austry; sente! deite! levante! coma! cague! durma! — tudo eu fazia automaticamente. 
 Não sei precisar quantas séries de eletrochoque foram aplicadas nesse segundo 
internamento. Como também não sei quantos dias, semanas ou meses foi preciso para me trazerem de volta do meu mundo. 
 Se o eletrochoque me levou a uma fuga do real, usavam-no agora para me resgatar. Para voltar daquele espaço flutuante e suave, como de um sono profundo e 
relaxante. Tudo foi tortuoso e marcante. 
 A sensação de indiferença a tudo pairava como uma nuvem de fumaça, dispersando-se lentamente. Mas havia a chamada — flutuar é tão bom... Confuso, em guerra com as duas partes. Uma chamava-me ao real e ao doloroso, a outra oferecia a paz flutuante. Confuso, sentia as dificuldades físicas. Era bom sentir novamente, mesmo que fossem dores — era bom. Mas o convite à anestesia geral, do corpo e da mente, era fascinante... entregar-me e flutuar. 
 Sentia dificuldades para andar, mas era bom. Eu estava começando a sentir 
novamente. Aquela sensação de leveza, de flutuar, estava me abandonando — eu 
queria e não queria que essa sensação me abandonasse. Mas estava descobrindo que 
não era somente comer, beber, cagar. Tinha mais alguma coisa. Estava descobrindo 
tudo novamente. Como um recém-nascido. Minha volta estava acontecendo, devagarinho, não de supetão. Sedado, continuava a não conseguir desabotoar um botão de camisa, os dedos endureciam. 
 Tinham me dito que passava dos cinco meses, desde que eu havia voltado a esse segundo internamento. Parecia que estivera dormindo acordado esse tempo todo. Estar em bloqueio mental é o mesmo que sentar na frente de uma televisão e, despreocupado, ver as cenas se sucederem, sem senti-las.
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 Voltava de um espaço desconhecido e perigoso, do qual muito poucos voltam, era fascinante. Jogado lá por um tratamento desleixado... se é que podemos chamar de tratamento! 
 Poderia ser hoje um dos malditos que não voltaram, e nunca voltarão. Ou, o mais 
provável, estar morto. Os crônicos que conheci dentro do Bom Retiro, nenhum 
deles está vivo hoje. Por que morreram? Só o canto continua o mesmo, são novos 
seus ocupantes. 
 Após mais um período de aproximadamente três meses, num total de oito meses 
desse segundo internamento, com os movimentos ainda lentos pelo efeito dos 
comprimidos, mas pelo menos consciente, os meus resolveram tirar-me do melhor e 
mais exemplar sanatório de Curitiba. Tiraram-me da responsabilidade do Dr. Alô 
Guimarães, catedrático em Psiquiatria, professor universitário da área. O mestre! 
 Passei alguns dias receoso, dentro de casa. Resolvo então sair, andar, ver gente. Estranho a rua, ando sem saber para onde. Fui ver minha turma. Aceitaram-me com reservas, eu não estava bem. Não era o mesmo. Havia mudado. Não os procurei mais. 
 Voltar aos estudos... após tê-los interrompido por mais de um ano e meio! Nem 
preparado para isso me sentia. Minha família queria colocar uma pedra em cima de tudo. Mas como? se ainda estava sob o efeito dos medicamentos... e depois de tudo que fizeram comigo? 
 Eu estava diferente, não ria mais nem era aquele garotão alegre e cheio de sonhos. Não falava muito, tinha dificuldades para me comunicar. 
 Por insistência familiar, fui procurar um emprego. Agora, com dezoito anos e 
alguns meses, quase dezenove, achei um emprego: vender seguros. Mongeral, o seguro mais antigo do Brasil. Foi difícil a preparação, não conseguia assimilar nada. O curso sobre vendas do Montepio era dado por uma psicóloga.
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De imediato ela percebeu que tinha algo de errado comigo. Pacientemente ela me 
aturou. 
 Nas provas escritas sobre o histórico do Montepio, sentia grandes dificuldades. 
Não assimilava de maneira alguma as apostilas sobre o seguro. Os efeitos eram 
evidentes — dos comprimidos e do eletrochoque. O raciocínio era lento e confuso.
 A psicóloga tentou de várias maneiras uma maior aproximação, para entender o que se passava comigo. Nunca lhe contei que havia sido internado. As pessoas têm preconceitos — afinal, eu era um ex-louco... 
 Ainda tinha muito de indiferença dentro de mim. Não estava me importando se iria ser aprovado para as vendas. Estava ali por insistência. Pouco importava. Não conseguia assimilar o que lia. As provas eram fáceis, os companheiros de curso logo respondiam as perguntas. Eu ficava com a prova na carteira, olhava-a, lia a pergunta inúmeras vezes. Não conseguia concentrar-me. Nem ao menos terminava de ler a pergunta, já não sabia mais qual era. Relia insistentemente, forçando a minha mente.  Não adiantava. Percebia o olhar da psicóloga entendendo o meu esforço. Os outros foram saindo da sala. Eu fiquei, prova em branco, só meu nome. Ela tentou interrogar-me. Disse-lhe que não estava passando bem. Mesmo assim ela me aprovou. Não podia lhe contar que eu havia mal saído de um hospício. É vergonhoso comentar que se é um ex-paciente psiquiátrico. É como se identificar como um ex-presidiário ou pior. Eu era louco. 
 Com insistência o branco se abatia sobre minha mente. Sabia como pegar um 
ônibus, andar pela cidade. Mas de repente, minha mente parava. E, muitas vezes, ficava sem saber onde estava. Talvez minutos, segundos, não sei. Tudo parecia parar — eu ficava sem ação. Se estava caminhando, continuava a caminhar sem saber aonde ia. A sensação de vazio, de oco, era freqüente. Bloqueios repentinos, efeitos colaterais dos comprimidos e eletrochoques.
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 Fiquei alguns meses trabalhando na Augustu’s Promoções e Vendas — firma 
encarregada da venda do Montepio Mongeral. Sem muito sucesso, não conseguia 
vender, nem me achar. Dialogar com as pessoas era quase que impossível. O raciocínio era muito lento. Às vezes conversando com um provável comprador, vinha aquele branco — pegava meu material e saía. O cara não entendia nada, as reclamações chegavam ao escritório. Mas graças à psicóloga, eu continuava no emprego. 
 Tinha dias em que eu não queria sair de casa. Tinha receio de tudo. Esforçava-me para me reintegrar, mas tudo era confuso e impossível. De certa forma, me sentia compromissado com a psicóloga. Ensimesmado e agressivo com os companheiros de escritório, estes me evitavam. Andava totalmente em conflito, sentindo insegurança em tudo. Tentava apoiar-me em alguma coisa, e não achava. 
 Os dias aconteciam. Os brancos em minha mente iam e vinham. Meu relacionamento com as pessoas era muito difícil. Não lhes podia contar que havia saído do hospício, que tivessem paciência comigo. E eu estava sob os efeitos dos horrores 
do chamado tratamento. Elas não eram obrigadas a me compreender. 
 Com muito esforço, sobreviveria. Poucas pessoas me suportavam, e era recíproco. Tampouco tinha muita iniciativa em manter relacionamentos. Preferia ficar o mais solitariamente que fosse possível. Fui convidado por um outro vendedor, que 
também não estava vendendo muito, para fazer um curso de criatividade de vendas, 
no SENAC. Não me interessou muito mas fui, sabia que tinha que me relacionar, 
que era preciso vencer esse obstáculo. 
 No SENAC, conhecemos duas gatinhas. Uma delas de imediato se interessou por mim. Foi um desespero. Desde que havia saído do hospício, não tinha tido necessidade de procurar uma mulher. Não sentia necessidades sexuais há muito tempo. 
 Ela era uma gracinha, e eu nada. Estava inerte, sem ação, não sentia nada. Durante os dias do curso começamos um namorinho.
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Acabamos num motel. Acabamos sim, pois eu não conseguia ter ereção. 
Isso me deixou mais confuso. Mais agressivo, meu Deus! Estou broxa, não sinto 
mais nada. O que fizeram comigo? 
 Essa experiência desagradável foi a gota que faltava. Minha agressividade 
aumentou. Frustrado, agredia com palavras pessoas que não tinham nada a ver com 
meus problemas. No escritório, já estava para ser mandado embora. Aconselharam-me a procurar um centro espírita. É encosto — é uma morena... é uma loira... (É a puta que o pariu!) Fizeram isso, fizeram aquilo. Mais confuso eu ficava. Desesperado, já não sabia mais quem eu era. Uma ruptura de personalidade que realmente estava me deixando louco. Se teve época em que precisei de um psicólogo, foi nesta fase. Um psicólogo, não um sádico psiquiatra. 
 Precisava urgente de ajuda, de alguém para me orientar. A confusão dentro de minha cabeça era tamanha. E a cada dia, mais desesperado ficava. 
 Muitas vezes pensava em me acidentar propositadamente, ficar aleijado ou me 
matar. Tudo era pura confusão. Efeitos e efeitos dos quilos de comprimidos e dos 
eletrochoques. Efeitos da salada russa que fizeram comigo. 
 A confusão era tanta, que eu queria parar de pensar. Batia com a cabeça na 
parede de cimento do banheiro. Meus familiares corriam em meu socorro. Uma 
noite, vindo de ônibus para casa, depois do trabalho, desci num ponto qualquer 
e, no poste de concreto, comecei a bater com a parte superior da cabeça. Pessoas 
que passaram de carro pararam. Conversaram comigo e trouxeram-me até em casa. 
 Já se comentava em achar outra instituição psiquiátrica para me internar. Mas 
agora eu recusava. Outras vezes achava que meu lugar era dentro de um hospício 
mesmo. A maior luta do ser humano é consigo mesmo, eu estava em plena guerra 
comigo e com os efeitos do desleixo e dos abusos sofridos. Num esforço descomunal tentava reagir. Havia ocasiões em que minha tensão era tanta que os músculos do pescoço endureciam, doendo com os movimentos.
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Já não encontrava forças para reagir. 
 Certo dia, dentro do escritório de vendas, um dos colegas, Edmundo, convidou-me para tomar um café. Com jeito, ele conseguiu que eu lhe contasse o que estava se 
passando comigo. Contei-lhe que havia saído do hospício há menos de quatro 
meses. Que estava sofrendo muitos conflitos. Que poderiam ser efeitos dos abusos 
sofridos dentro desses laboratórios de cobaias. 
 Mais tarde, fiquei sabendo que fora a psicóloga que lhe havia pedido isso. Mas 
ele me escutou pacientemente. Mostrou- me uma correntinha com uma imagem de 
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, dizendo-me que era seu devoto e que eu 
parasse de freqüentar centro espírita e que fizesse uma novena à Santa. 
 Não fiquei muito entusiasmado. Mas quando me encontrava, ele me cobrava: “A 
novena é às quartas-feiras, em vários horários, faça, Austry!” Não tinha nada a 
perder. Por que não? Acompanhei sem fé tudo aquilo que ouvia na novena. Mas de 
alguma maneira, na primeira vez saí mais calmo. Retornei na semana seguinte e, a cada novena, me acalmava. Todas as semanas, por um longo período, eu estava lá, no Alto da Glória, bairro onde fica a igreja da Santa. 
 E aos entendidos em psiquiatria, e aos psiquiatras, afirmo que tudo começou a se 
encaixar na minha cabeça. Também dispenso suas explicações hipócritas a respeito 
do que aconteceu. Eles podem querer explicar da seguinte maneira: que eu sugestionava minha mente e meu subconsciente ao pedir à Santa minha melhora nas novenas e, assim, comecei a melhorar. Mas prefiro a definição do prêmio Nobel de Física, Niels Bohr: “... também devemos considerar leis de uma espécie totalmente diferente.” 
 Se foi auto-sugestão, ou milagre, eu não sei. Só sei que a nuvem de dúvidas e o branco em minha mente se dissiparam, como se alguma mão invisível as houvesse afastado. Minha confiança de adolescente rebelde voltara.
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Sentia-me bem, tinha vontade de viver, de sair e me divertir. Amar, trepar... e como comecei a trepar! Sempre tive boa aparência, as mulheres nunca foram problema. Sempre vinham fáceis. 
 Sentia-me capaz de enfrentar o cotidiano. Foram meses de sufoco e luta para 
encontrar um ponto de apoio dentro de mim. Mudei de escritório de vendas, fui 
trabalhar com a Golden Cross, assistência médico-hospitalar, seguro-saúde. Parece piada! mas fui campeão de vendas várias vezes dentro da minha equipe... 
 Tudo corria de bom para melhor. Ganhava o suficiente para as minhas farrinhas, 
as trepadinhas sem problemas e meus tapinhas na maldita. Esses tapinhas aconteciam quando pintava. Não gastava dinheiro com maconha. Estava recuperado, como se fosse realmente um milagre. Aquele sufoco, a angústia de ser uma folha seca, perdido como me encontrava.., como por uma mão invisível, um milagre. Nas novenas, e não foram muitas, na terceira ou quarta vez que fui à igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Creio, sim, que milagre existe! Existe uma força superior que vence toda e qualquer mediocridade de nossa vã filosofia. Já ouvi essa frase em algum lugar, “vã filosofia”... 
 Aquele pesadelo, com psiquiatra aplicando-me eletrochoque, enfermeiros fechando portas, comprimidos dados aos quilos diariamente. As idas ao pátio para 
esquentarmos nossas pulgas e muquiranas. Tudo aquilo tinha sido um sonho horrível, e eu me esforçava para esquecer. Só que, na realidade, nunca esqueceria. E com ele teria que aprender a viver. 
 Resolvi fazer um curso de teatro, no Teatro Guaíra. Freqüentei o curso por um 
período de mais de seis meses. Recebia elogios nos exercícios de interpretação que fazíamos, tanto de professores como de colegas. Eu servia para o negócio. Na empolgação, queria me tornar ator, de nível nacional. E como os talentos paranaenses não são valorizados e respeitados em seu estado natal, as chances nunca aconteciam.
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 Minha mãe me havia falado de um primo seu que fazia teatro, novela e cinema no Rio de Janeiro. Seu nome é Miguel Carrano, um ator conhecido e respeitado no meio teatral do Rio de Janeiro. A idéia amadureceu rapidinho. Vou ser ator da Rede Globo! Vendi o que podia. 
 Fui para morar, não como da outra vez, na aventura. Se segurem, cariocas! o 
garanhão paranaense regressou. Já sabia que para ir da rodoviária para Copacabana era pegar o 127. A vagabundagem parecia a mesma. Em Copacabana, o Jornal do Brasil e O Globo na mão. Seção de vagas. Muitas vagas para alugar. Não foi difícil achar uma. Um conjugado, na Nossa Senhora de Copacabana n 1.150, Posto 6. Éramos apenas nove hóspedes, mais uma senhora negra, a responsável pelo conjugado, e também um sobrinho seu, que era bichinha. Ao todo éramos onze pessoas, num conjugado. 
 Éramos uma grande família de filhos pródigos. Quatro beliches, de duas camas 
cada, uma caminha de rodinhas, que ficava em baixo de um dos beliches. A velha negra dormia numa altura de um metro, mais ou menos, em cima de uns caixotes, onde havia uma tábua. Ela tinha problemas de coluna. A donzela da casa dormia num quartinho improvisado, que na realidade era a saletinha do conjugado, junto à única porta de entrada. Na parte grande do conjugado, os beliches. Em cada cama, um cavalheiro. O mais confortável era, sem dúvida, o da donzela, a bichinha, que ficava isolada dos distintos cavalheiros. Eram normais as trocas de informações culturais entre os cavalheiros: 
— Porra! esse cabide é meu! 
— Teu porra nenhuma! E tire as tuas roupas desse lugar, aí é meu espaço! 
—É merda nenhuma, meu chapa! 
 As gentilezas eram trocadas a qualquer pretexto. Como na hora de todos 
levantarem e saírem para o trampo. O banheiro enorme, para o tamanho do conjugado, era o ponto de muitos encontros. Alguns resultavam no cavalheiro ir trabalhar de olho roxo.
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As diferenças eram tiradas na hora. A nossa sorte era a tia Negra, que impunha um certo respeito e assim evitava as “gentilezas”, se não fosse isso seriam mais freqüentes. A grande família de pródigos não era a única em Copa. Existiam muitas outras iguais à nossa. 
 Tudo corria bem no Rio — trabalho, praia, garotas... Menos meu objetivo: ser 
ator. Procurei o meu primo, morava pertinho de onde eu estava, na Mem de Sá. 
Mostrei documentos, falei de bisavós, tataravós e ele não conseguia ver o parentesco. Eu era na realidade seu primo em segundo grau, minha mãe era sua prima, mas ele não se recordava dela. Tudo bem, conversamos, falei que queria ser ator, ele disse que ótimo! e ficou nisso... 
 Não me sobrava tempo para ficar à espera de uma oportunidade artística. Tinha 
que comer, pagar o aluguel da vaga e viver. Comecei a vender Enciclopédia Britânica, na rua São José nº 40, mas não me adaptei muito ao produto, muito difícil de vender e caro. Arrumei um novo nome e, no entanto, o adotei de imediato. Havia por lá um gerente, gente finíssima, um senhor já de certa idade, chamado Sr. Romano. Achou que o meu sobrenome rimava com o seu nome, e passou a me chamar pelo sobrenome. Adotei na Britânica esse sobrenome-nome: Carrano. 
 Com todo o carinho que sentia pelo Sr. Romano, pedi demissão, pois tinha que comer e para vender Britânicas necessitava de um certo dom que realmente não tinha. 
 Fui para a Golden Cross, conhecia melhor o papel. E precisava urgente de grana. 
Após um curso rápido, comecei a vender. O Rio é a matriz da empresa. E com o gerente que era uma fera, vendia-se até o Pão de Açúcar para carioca. Seu nome era Washington, dava umas palestras antes da negada sair à luta. Saíamos como uns leões à procura de ovelhas. E trazíamos ovelhas ao fim do dia. Do escritoriozinho na rua Buenos Aires, nós, a nossa equipe, tornamos conta do maior escritório de vendas da firma, na rua Sete de Setembro. O Washington virou chefe geral do escritório.
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Fez eleições democráticas para escolhermos o novo gerente da nossa equipe. Os dissidentes passaram para outras equipes que já existiam no grande escritório. Foi uma folia de eleição. Foi uma fase empolgante para mim. Os incentivos dados por colegas de serviço muito contribuíam. Éramos todos picaretas em alto-astral. Não que a profissão de vendas seja toda de picaretas. São profissionais como outros quaisquer, mas às vezes nos chamávamos entre nós de picaretas... um termo até carinhoso entre os vendedores. 
 A grana estava dando até para pensar em alugar um cantinho só para mim. Vivia 
direto numa discoteca chamada New York City, em Ipanema, quase na divisa com Copacabana. Uma bela noite, me envolvi numa briga. Todo mundo para a 13ª delegacia, em Copa, perto de onde eu estava morando. Onde será que estão a Rainha e a Taninha? A delegacia era a mesma. Na cela comecei novamente a gritar um bocado de besteira. 
— Eu trabalho, não tive culpa na briga! Eu tenho que trabalhar amanhã! Vocês... me tirem daqui! Eu sou um ex-paciente psiquiátrico, me tirem daqui! 
 Gritando sem parar, devo ter dito qualquer palavra mágica. Em poucos minutos 
vieram dois tiras à paisana. Já estava amanhecendo. Levaram-me até a frente da delegacia, à sala onde a mesa do delegado ficava num tablado, o que nos obrigava a olhar para cima. No banco de madeira, fiquei sentado um tempão. Depois fui 
introduzido novamente na carruagem oficial de vagabundo. Dentro do camburão, 
escuro. Ué? será que estão me levando para alguma penitenciária!? Rodamos alguns 
minutos. Paramos, tentei ouvir o barulho dos portões de ferro abrindo. Não ouvi. Abriram a porta do camburão. Entregaram-me a outros dois guardas. 
 Esses guardas usavam uniformes brancos. Eu estava sendo internado no Hospital Psiquiátrico Pinel, em Botafogo. Não podia ser verdade! Meu pesadelo voltara. Conversando com um psicólogo, expliquei-lhe que havia sido internado algum tempo num hospital psiquiátrico, em Curitiba.
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Explicou-me que eu teria que aguardar o psiquiatra chegar e... também tinha o problema do pessoal da polícia. 
 Fui escoltado pelos enfermeiros para o interior do recinto. Subimos uma escada, 
após percorrermos um corredor. Subimos outra, uma porta grande. Abre-te sésamo! 
Era uma imensa enfermaria. Internos uniformizados entravam e saíam das salas. Um 
corredor comprido, lado a lado as portas que davam acesso ás enfermarias. Chamou-me a atenção o uniforme da loucarada, marrom-claro, bege, uma cor estranha — calça e camisão. 
 De imediato, veio até nós uma senhora negra, com um largo sorriso, pegou-me no braço e tirou-me dos braços daquelas múmias de branco. Em uma sala, mandou-me 
tirar as roupas e vestir um daqueles uniformes. Colocou as minhas roupas num plástico, anotando meu nome num papel. Que uniforme feio! Dentro de uma das enfermarias, daquela superenfermaria, apontou para uma cama, dizendo-me: 
— É sua! 
 Aquilo era uma piada, eu estava internado! Agora... não por culpa da ignorância 
dos meus pais. Culpa de ninguém, vítima de minha pequena malandragem. Estava novamente internado, no pesadelo. Não sei explicar, mas não conseguia ter uma reação, estava meio abobado, sentado naquela cama fofa com lençóis brancos engomados. De súbito, uma sensação de muita agonia e medo. Eletrochoque! De imediato, procurei informações. 
 Estava cansado, pois numa noite de cadeia não conseguira dormir nada. Fui 
acordado na hora do almoço. Saímos daquela enfermaria, descemos escadas em fila 
indiana, viramos por um pátio, subimos outra escada. O pavilhão das refeições ficava de frente para a rua movimentada, num segundo andar. Esta rua tem um fluxo violento de carros vindos de Copacabana em direção ao centro. 
 Fila para o almoço. Bandejões de alumínio. Colheres, é claro. Enfermeiros. Os 
outros de branco deveriam ser psiquiatras, médicos, sei lá.
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Comiam no mesmo refeitório. Sentavam em outras mesas — nós os loucos aqui, eles, os normais, lá. Após o almoço, voltamos à enfermaria para fazer a sesta. À tarde, uma surpresa, incrível, inacreditável, impossível, fantástica, deslumbrante: vieram buscar-me para falar com o psiquiatra. Mais de um ano internado no Bom Retiro, e vim a ter esse privilégio com tão distintos personagens intocáveis aqui no Rio, no Pinel, em Botafogo, bairro do Rio de Janeiro, na Cidade Maravilhosa, cartão-postal do Brasil... 
 Era um senhor simpático, cabelos grisalhos, rosto fino, baixo. Fui recebido com 
gentileza em seu consultório dentro do Pinel. Conversamos muito, informei-o dos meus internamentos anteriores. Do estado em que fiquei. Abismou-se com o uso indevido de eletrochoque no meu caso. E também disse-me que não usava o eletrochoque, que pessoalmente era contra o uso da queima de chifres — usando os meus termos. Anotou meu nome completo e endereço dos meus pais em Curitiba. Sinceramente, ali estava um psiquiatra que realmente sabia o significado do sacerdócio que é a sua profissão. Conversou comigo de igual para igual. 
 O Pinel era totalmente diferente do sistema arcaico e ultrapassado do Sanatório 
Bom Retiro. Outra surpresa agradável foi quando nós, loucos, descemos para o pátio, também pequeno mas arborizado, no interior da própria instituição, entre os edifícios que compõem o Pinel. Edifícios de poucos andares e compridos. 
 Mas no pátio, a surpresa. Umas gatinhas estavam à nossa espera. Oba! — pensei — vamos ter suruba. Eram estudantes de psicologia, estagiando dentro do Pinel. Éramos os seus trabalhos para a universidade. De imediato, uma morena gostosa, linda e simpática, se interessou pelo meu caso cinematográfico. O destino estava me cansando com esse troço de entra e sai desses hospícios. 
 Queria me ajudar, embora eu também não soubesse ao certo o que eu estava fazendo ali.
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Só pode ter sido porque tinha caído nas mãos dos homens da lei. Elas eram ótimas, nos entretinham com jogos, música, dança, até teatrinho! Eram sensacionais, a loucarada adorava. Preenchiam a ociosidade deprimente dessas instituições. 
 Após uns quinze dias no Pinel, verifiquei que os medicamentos não eram tantos 
como no Bom Retiro. Pelo menos para mim. Mas muitas irregularidades. Enfermeiros 
de pavio curto. Vi-os agredirem pacientes com o que tinham na mão, bandejas de injeção, socos e chutes... davam porrada mesmo! Na cozinha, que é no mesmo local 
do refeitório, baratas passeavam por cima do que iria ser cozido, nos pães, nas verduras, nos talheres... muitas baratas faziam a festa. A higiene na alimentação era zero. Panelões de água fervendo, em que podia entrar uma pessoa de cócoras. Os pacientes mais antigos trabalhavam na cozinha. Rodavam as panelas de água fervendo. A conclusão é que podiam ser loucos, mas não eram bobos de darem um mergulho dentro da água fervendo. 
 O Pinel é privilegiado, pelo fácil acesso. É um hospital psiquiátrico de grande 
fluxo de estagiários de universidades, e isso é ótimo para o interno. Tudo é somado para que os abusos e o desleixo sejam bem menores que em outras instituições do gênero. A Colônia Juliano Moreira, o Juqueri, em São Paulo, o Adauto Botelho, em Curitiba, e outras instituições não passam de verdadeiros campos de concentração e laboratórios de pesquisas, onde a cobaia é o interno. O que será que acontecia naquela época dentro dessas outras instituições de terror? 
 No dia em que eu estava completando mais de uma quinzena de hospedagem no Pinel, meu velho veio me tirar. E aconteceu algo que o deixou bastante impressionado. 
Momentos antes de me liberarem, haviam me aplicado um segura—louco, o Haloperidol — a Tortulina. Quando estávamos no táxi a caminho do meu quarto, na 
Glória (nessa época eu já tinha alugado um quarto só para mim, numa república), começaram os efeitos da droga.
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Retorcia-me tanto que não só assustei meu pai, como o motorista do táxi. Voltamos ao Pinel. O responsável de plantão, era hora de almoço, não queria me liberar naquele dia — ainda mais com o efeito da injeção. Ficou indignado por terem me liberado. Mas eu não queria ficar ali nem mais um dia. Insisti que me dessem um comprimido de Akineton, que corta o efeito do Haloperidol. Recusava-me a ficar. Papai do lado, deram o comprimido e fomos embora. 
 De novo, o filho pródigo em Curitiba. Ah, rebeldia da adolescência, como me 
fizeste bater a cabeça! Em Curitiba, sem muitas perspectivas, fiquei uns meses sem nada fazer. Vagabundeando, arrumando uns trocos aqui e ali. A Boca Maldita, no centro da cidade, é um pedaço onde se transa de tudo. Desde a compra do Pão de Açúcar... até a venda das Cataratas do Iguaçu. Tem de tudo para comprar e vender na Boca Maldita. Dá para descolar um troco, é só ser esperto. Se não for, descola umas estadas por conta do governo no Casarão, a prisão do bairro do Ahú. Mundo cão, mundo cão, tu não é pra bobo não! 
 Minha agressividade era algo marcante, tudo era motivo para agressão. Tinha 
perdido o amor e o respeito por mim mesmo. Estava revoltado com o mundo. Quando 
não aparecia em casa por uns dias, meus velhos sabiam: eu estava preso em alguma 
delegacia. Virei freguês da delegacia de Plantão, por causa de brigas na cidade. Estava querendo desforrar meus infortúnios em todos à minha volta. 
 Um dia, na rua das Flores, conversando com um tira já coroa, que havia me tirado de uma encrenca num barzinho, uma garota veio solicitar os seus serviços. Eu, 
metidinho, fui junto. Um brutamontes no barzinho do calçadão. Levantou-se e começou a dar de dedos no velhote-tira. Nunca gostei de ninguém que desrespeitasse pessoas mais velhas, embora... meus velhos, freqüentemente os desrespeitassem. Estava afastado da confusão, mas o brutamontes estava ameaçando meu conhecido. Não esperei e cheguei chutando o estômago do mastodonte.
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Nisso um outro cara, que surgiu não sei de onde, me agarrou os cabelos por trás, me deixando de cócoras. E o filho-da-puta do meu conhecido-guarda não fazia nada para me ajudar. Já imobilizado pelos dois e recebendo gentilezas de todo o tamanho, descobri que os dois eram tiras da policia civil. Jogaram-me dentro da joaninha, um fusca da policia militar. E na delegacia... 
 É incrível a violência policial, como são covardes! Você já está preso, não é 
otário de reagir. Você está ali: é só sim, senhor! não, senhor! Aí eles começam a enche-lo de porrada. É preciso, para isso, ser muito mesquinho e covarde. E no meio policial é uma tradição eles derrubarem de pancada o infrator. Não é à toa que são odiados e merecem o apelido de ratos. 
 Na delegacia, o cara que recebera o meu chute no estômago desforrou toda sua 
frustração. Fui colocado na famosa rodinha de crápulas. Batiam na cara de mão aberta, no estômago com os punhos cerrados. Eram porradas de tirar a respiração. 
Tinha uns seis porcos me batendo. Principalmente o rato de esgoto que eu agredi — furioso de eu não lhe dar o prazer de me derrubar... Como eu fui burro! na primeira porrada eu devia ter caído, e lá no chão ter ficado. Até os tiras da PM entraram na festa, com o cassetete. Eles me davam nas costas! Nunca havia apanhado tanto na minha vida. Um corno manso, de uns quarenta anos mais ou menos, rato que não havia entrado na festa, disse: 
— Querem ver como eu derrubava esses caras na minha época? 
 Agarrou minha farta cabeleira e puxou-me para vários lados. Eu, com o tórax encurvado, o acompanhava. Cansado de querer arrancar todos os meus cabelos com as mãos, declara: 
— Esse cara só pode ser de circo!... 
 Aquelas palavras satisfizeram meu ego carente de segurança. Mas feriram mais ainda o ego carente de... tudo, daquele rato que levou um chute no estômago. Sua revolta não acabava, meu estômago já devia ter-se misturado com meus rins, ele não parava de me socar.
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Acabou vencendo, caí e mesmo caído o cara continuou a me chutar no estômago. Já 
meio perdendo os sentidos, fui arrastado pelo pátio da delegacia de Plantão, para o pavilhão das celas. 
 Depois de me jogarem dentro de uma delas, ele entrou e continuou a me chutar... onde pegasse. O outro crápula que estava com ele expulsou aos gritos: 
— Se acalma, homem! você vai matar o rapaz. Se acalma! Calma! 
— Esse pirralho de uma figa... eu te mato, desgraçado! Amanhã cedinho, venho terminar de te quebrar. Esse puto me chutou o estômago lá na rua das Flores, no 
meio de todo mundo. Desgraçado, amanhã eu continuo! 
 Se ele continuasse, com certeza ia acabar me mandando para o hospital ou 
cemitério. Estava todo arrebentado. No chão, eu chorava não pelas dores mas por eu estar passando por isso também. Cada vez mais se alimentava minha rebeldia contra o mundo, contra as pessoas. Estavam construindo um assassino frio. 
 Noite adentro, já de cabeça fria mas todo dolorido, veio-me uma grande idéia. Já 
ouvira estórias de malandros que chegavam até a se cortar ou se furar para escapar das sessões de pancadaria e tortura dos tiras. Assim, eram levados para hospitais, e lá tentavam, através do médico, qualquer tipo de proteção para não apanharem mais. 
 Estava com uma jaqueta jeans, com botões de pressão. Arranquei todos os botões e os engoli. Assim passaria mal, e me levariam para um hospital. 
 Aguardei que os botões em meu estômago surtissem efeito. Nem sequer uma azia, só aquele monte fazendo volume. Os botões deviam ser de má qualidade. Tive então outra idéia genial. 
 O crápula viria pela manhã me encher de carinho... teria que encostar as mãos em mim. Não calculei que pudesse usar um cassetete.
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Se estiver sujo de alguma coisa, ele não irá encostar suas patas em mim. Lama aqui dentro não tem. Carvão, graxa — aqui dentro não tem nada. Com que poderia me sujar para evitar que encostasse em mim? Não deu outra, caguei em minha mão! Passei nos meus lindos cabelos longos, no rosto, nos braços, nas roupas, enfim, em tudo. Fiquei cheirozinho para um baile de quinze anos. 
 Tinha tolete de merda no corpo todo. Assim ele teria que sujar suas lindas 
patinhas, quando começassem as sessões de pancadaria. O incrível é que, no começo, sentimos o cheiro das fezes, mas passando alguns minutinhos já não se estranha mais o cheiro. Dormi como um recém-nascido tirado a gancho, dolorido mas protegido. 
 Naquela bela manhã, nem sei se era bela, senti um pontapé nas costas e uma voz de filme de terror. 
— Acorda seu puto! Olha só o que esse louco fez, passou merda nele mesmo! — 
gargalharam. 
 Era o meu carrasco e o puxa-saco que o tirou de cima de mim ontem. Os machões mandaram-me sair da cela. 
— Ande, vamos mais depressa — ordenaram, ficando mais para trás. Por que seria? 
Gozado, não queriam que me aproximasse deles. Ontem iam me encher de porrada, 
agora estavam evitando se aproximar de mim. Por que seria? Devia ser o meu perfume haitiano. Não gostaram. 
 Quando chegamos ao pátio da delegacia, fui um sucesso. Os outros crápulas, ratos como os dois que me escoltavam de longe, começaram a rir e a incentivar o 
frustrado a fazer carinhos em mim. Ele não queria, hoje eu já não era o seu tipo. 
 Fui colocado numa Brasília gelo, bege, sei lá. Sem o banco traseiro, só o latão 
do carro e separado do motorista por uma tela com furinhos. O rato que foi agredido, ao volante. O crápula, também rato, seu puxa-saco, como passageiro. 
 Já a caminho de não sei onde, divertia-me com o comentário dos dois sobre o meu perfume haitiano.
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Eles estavam incomodados, eu gozava mentalmente. O cretino dirigia com a cabeça mais para fora da janela do carro. O puxa-saco ria e gozava do companheiro de torturas. Mas também estava com a cabeça para fora do carro, tomando vento. Eu estava com o meu ego um pouco satisfeito. Mas não estava contente, minha vontade era pegar aquele filho de asno abandonado e fazer ele comer uns toletezinhos. Comecei a sujar ao máximo a parte de trás do carro, colocando pedaços de merda, já duros, em todos os 
cantinhos, escondidos. O meu perfume haitiano iria permanecer por um bom tempo 
ali com eles. 
 Já havíamos rodado um bocado. Estávamos na estrada que leva para Piraquara, uma cidadezinha vizinha do município de Curitiba. Também é local de uma penitenciária do Estado. Fiquei meio ressabiado. 
 Chegamos a um pátio em frente de uma enorme construção. Procurei as 
metralhadoras, as casamatas, os tanques de guerra, tudo que a gente vê em filmes 
como O homem de Alcatraz. Li numa plaquinha: Hospital Psiquiátrico San Julian. 
Pode? 
 Meu pai, após minha volta a Curitiba, tentou me internar no Hospital 
Psiquiátrico Pinheiros. Lá eu reagi, não entrei na dele. Hospitalizou-me depois no Hospital Glória, psiquiátrico. Fiquei uma semana, e consegui fugir. Agora tinha sido preso, e ele certamente não podia deixar escapar essa chance. Era sua melhor oportunidade desde o meu regresso do Rio. 
 San Julian, um lar por tempo indeterminado. Era um hospital novo, em meados de 1977. Seu formato, um grande U. Um dos lados tinha quartos individuais, chamados 
de apartamentos. Na outra parte estavam as enfermarias. Ao todo, dezesseis. Na parte da frente desse grande U, ficavam a sala de enfermagem com os remédios e um enorme salão-refeitório, com muitas mesas de fórmica de várias cores, quatro cadeiras a cada uma delas. Havia um corredor que ligava as alas e a cozinha. No salão-refeitório, na parede em cima, um aparelho de TV, com alguns sofás individuais que formavam uma saletinha.
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A parte interna do grande U era o pátio, maior que o pátio do pavilhão San Quentin no Bom Retiro e do Pinel, no Rio. Ao fundo do pátio, atrás dos chamados apartamentos, ficavam alguns quartos, que eram os cubículos para os castigos, e uma saleta de jogos, com mesa de sinuca. E lógico, na parte de trás do grande U, um muro alto. Este era o 
Hospital Psiquiátrico San Julian, em 1977. 
 Fui levado para um dos quartos particulares, que em sua maioria estavam vazios. 
Depois de um banho de alguns minutos, quando esfreguei-me até deixar a pele vermelha, dolorida pelas gentilezas dos quadrúpedes, fui conversar com um cara de branco, na saleta da enfermaria. Ele conversou um pouco e aplicou-me uma 
Três-por-um. A mesma que o Marcelo me tinha aplicado da primeira vez que fui internado. Dormi até o dia seguinte. 
 Acordei no mesmo quarto em que havia tomado banho. A roupa era a mesma que havia vestido na véspera, não sei de quem era. O quarto era uma suíte, com banheiro particular. Cama confortável, com manivela de levantar em um dos lados. Um 
guarda-roupa cor escura, betumado e envernizado. Janela, vitrô gradeado, um criado-mudo de latão esverdeado. Tinha espelho no banheiro, desses em que se guarda escova de dentes dentro. 
 Será que tem choque? Era a minha primeira preocupação dentro dessas instituições pelas quais passei. No hospício da Glória usavam os eletrochoques como castigo, nos cubículos que eram iguais às celas de cadeia. Levantei e fui ao corredor 
fora do quarto. Estava tudo vazio, os quartos abertos. Entrei por outro corredor, o da frente do U. Avistei uma fila de pessoas. Vinham da outra ala e atravessaram o corredor central em direção à cozinha. A visão daquela galera sempre foi e continuará a ser chocante. Cagões, cabeças raspadas manchadas de iodo, anormais, inchados de cachaça. É a visão da escória, da degradação humana.
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 Encaminhei-me para o fim daquela enorme fila. Devagar, olhando um por um, perguntei a um de aparência normal: 
— Aqui eles aplicam choque? 
— Tem não, moço — respondeu um caipira. 
— A fila é pra quê? 
— Pro café. 
Fui para o fim da fila. Será que esse caipira sabe o que é choque? Não contente, perguntei a um loiro de cabelos curtos, um pouco á minha frente: 
— Ei, você, ô... o loiro! 
— Eu?... o que você quer? 
— Chega mais. 
— Não posso, perco o meu lugar. Venha você aqui! 
— Meu nome é Carrano, cheguei ontem. Eles aplicam eletrochoque por aqui? 
— Não! meu nome é Orlando. 
— Falou! — voltei para o fim da fila. 
 Já era um alívio não aplicarem choque. O resto eu tirava de letra. Já era macaco velho de hospício. Os poderosos responsáveis eram dois psiquiatras. Só me lembro do nome do psiquiatra responsável pelo meu “tratamento”: Dr. Alexandre Sech. 
 Às onze e pouco da manhã, fui conhecê-lo. Em menos de cinco minutos, perguntou meu nome e rabiscou na ficha. Fui diagnosticado. Entrou outro interno no seu 
consultório, no corredor de ligação das duas alas. 
 Esses psiquiatras são mágicos ou paranormais. Olham para o paciente... e já sabem os tipos de traumas, de lesões, de doenças, enfim, são mestres em diagnose a 
olho! Rabiscam dosagens de comprimidos sem ao menos esquentarem suas consciências, se é que têm alguma! Esses medicamentos têm efeitos a longo e a curto prazo. Esses tipos de diagnósticos fazem parte de suas confissões, em seus livros: “O nosso conhecimento da etiologia em Psiquiatria é tão primitivo e incompleto que apenas esparsamente podemos utilizá-lo diretamente para orientar os nossos métodos de tratamento.”
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 Os diagnósticos são feitos nas coxas, no máximo em cinco minutos. Dois psiquiatras eram responsáveis por mais de oitenta pacientes. Revezavam-se, a cada dia vinha um, que permanecia no máximo duas horas dentro do hospício. Consultavam uns trinta pacientes nessas duas horas e sumiam para seus consultórios particulares, em Curitiba. Ficávamos abandonados nas mãos do incompetente corpo de enfermagem. 
 Uma enfermeira-chefe, formada, era a responsável pelo corpo de enfermagem, que não era composto de enfermeiros formados, e sim caipiras da cidadezinha, que estavam trabalhando como assistentes. Mas a enfermeira-chefe também não permanecia no San Julian. Ela era funcionária do hospital clínico de Piraquara, que ficava a uns três ou quatro quilômetros do San Julian. Não permanecia no hospício, só aparecia quando surgia alguma emergência. 
 Os que usavam uniforme branco haviam aprendido a aplicar uma injeção em nossos nervos. Um ou outro, após ter começado no serviço, se interessava por fazer um 
curso de enfermagem. Com o curso, o seu salário aumentava. Eram ao todo em torno de seis elementos que se revezavam, fora os três que faziam turnos à noite. 
 Numa emergência, acontecia o que eu vi ocorrer: um paciente recém-internado 
trazido por familiares, logo após o jantar, estava inchado por efeito de bebida ou sei lá. Foi recolhido pelos chamados enfermeiros Airton e Sidrak Magalhães. Na sala de enfermagem, esses dois quadrúpedes o medicaram. Quando um novo interno chega ao hospício, torna-se, por algumas horas, a novidade. Ficamos observando o que fariam com o companheiro recém-internado. Ele estava eufórico e impaciente. Depois que saiu da sala de enfermagem onde lhe aplicaram qualquer droga, queria comer, estava com fome. Tinha em torno de uns trinta anos. Comeu e ficou zanzando pelo refeitório, onde víamos TV. Quando nos preparávamos para os medicamentos da hora de dormir, em torno das vinte e uma horas, o recém-chegado caiu no refeitório.
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Recolhido às pressas à sala de enfermagem, pudemos ver o coitado, deitado na cama, coberto com uma lona plástica azul, defecar e, junto com suas fezes, cagar parte de seu intestino grosso. Fezes misturadas com tripa e sangue. Desesperados, os enfermeiros telefonaram para um médico do Hospital de Piraquara. Quando o médico chegou o recém-internado já estava de barba branca de tanto conversar com São Pedro. 
 O recém-chegado morreu de quê? Dos medicamentos que lhe deram uma reação e o levaram à morte? Devido à incompetência dos chamados enfermeiros? Por falta de 
uma pessoa realmente capacitada dentro do hospício? Quais os responsáveis pela morte daquele coitado? Alguém foi preso? Não, ninguém foi responsabilizado. Deram um diagnóstico qualquer e a família limitou-se a chorar a sorte do infeliz. 
 Já era macaco velho de hospício, como era o Rogério quando fui internado da 
primeira vez. Fugi por um bom tempo dos comprimidos, cuspia fora. Descobriram e 
passaram a me obrigar a colocá-los na boca e passavam os dedos para ver se eu os havia engolido. 
 Neste período dentro do San Julian fiz também um diário, com datas e horários. É fácil perceber o meu estado de sedação, pela grafia. A dificuldade de escrever era imensa devido ao estado de auto-sedação em que me encontrava. Os medicamentos não eram apenas comprimidos, estavam me aplicando injeções endovenosas. Este caderno, eu o guardava em segredo, enrolado em minhas roupas. Tinha receio de que o tirassem de mim. Escrevia no banheiro ou, quando estava só, no quarto. Com dificuldade em segurar a caneta, desenhava as letras. E nem sempre conseguia terminar de escrever a palavra. Essas sedações quase que generalizadas, são, sem dúvida, uma prova de enorme desleixo. É comum um número grande de pacientes altamente sedados dentro das instituições. Usar as drogas em massa, como se faz com os pacientes desses hospitais-acionistas de laboratórios químicos, é um crime contra os direitos humanos.
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Frases escritas por Austry em seu diário:
- Enfermaria não ruim, regular.
- Higiene.
- Só que agora o banheiro é coletivo, e há pacientes que se defecam até em si mesmo.
- O banheiro, seu estado é horrível.
- Eu vou tentar arrumar um espelho desses. Do banheiro quebrei e cortei a mão esquerda.
- Me tiraram do apartamento só porque vim nesta agora.. minha ala emprestar um jibi de um amigo. O enfermeiro responsável por isso se Airton.
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Continuação das frases:
- Falei dos problemas das enjeções nas minhas veias que são intupidas.
- Falei com o Dr. Alexandre o qual mentiu-me afirmando que iria suspender as enjeções. Mas não fez porque ele pouco se importa com um paciente. Ele é um quadrúpede. Vou tentar processa-lo por danos físicos, cujo os danos físicos são minhas veias endurecidas.
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 Mas além da sedação, havia outro problema: as injeções endovenosas. Aplicaram-me uma injeção na veia todos os dias, durante um longo período. As minhas veias são difíceis de se apanhar e, também como uma autodefesa de meu organismo, a cada dia pareciam se recolher, se escondendo cada vez mais. Furavam meu braço várias 
vezes, passavam para as mãos, os pés, tentavam até na perna. Era um sufoco para mim a cada sessão dessas malditas drogas. Quando conseguiam pegar alguma veia, tinham que ir com calma. Mas na maioria das vezes elas estouravam e formavam uma erupção embaixo da pele. Eu pagava e ficava com saldo a meu favor com meus pecados. 
 Certo dia, precisaram tirar sangue para um exame. Os chamados enfermeiros não 
conseguiram apanhar minha veia, então me furaram onde puderam. A enfermeira-chefe tentou umas três vezes, e não conseguiu. Estava difícil e para mim dolorido, já tinham-me feito uma peneira, para onde olhasse estava sangrando. Havia um médico clínico no hospital. Na enfermaria, mandou-me deitar na cama. E, com a agulha em pé, tirou sangue de minha virilha. Dolorido, fiquei até com dificuldade no caminhar. Disseram-me que, no caso de um acidente, teriam que me cortar para apanhar a minha veia. Mas realmente as minhas veias estavam muito difíceis de serem apanhadas, até endurecidas de tanto serem furadas. 
 Sidrak Magalhães, um cara grosseiro, criado na roça, cavalo em forma humana, era um desses chamados enfermeiros. Numa aplicação das injeções perdeu a paciência 
depois de me ter furado uma porção de vezes e aplicou a injeção toda, de uma vez, no meu braço esquerdo. Meu braço inchou de tal maneira que ficou o dobro do que era. 
 Esses tipos que colocam uniforme branco deveriam ser vestidos de uniformes 
listrados e abrirem metrô com picareta de borracha. Infestam e, como são muitos, apodrecem a classe de enfermagem. 
 Quase perdi o meu braço esquerdo. Além do inchaço, ficou roxo e esverdeado, e muito dolorido.
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Foi necessário fazer tratamento no hospital clínico porque o filho de asno ficou nervosinho. 
 Os verdadeiros responsáveis, os psiquiatras, nem ficavam sabendo dos absurdos 
dos enfermeiros... como eles exigiam que nós os chamássemos. Os psiquiatras eram 
como visitas, passavam duas horas no hospício e sumiam. Nos largavam à mercê de 
pessoas desqualificadas e grosseiras. Esses enfermeirinhos feitos nas coxas nos 
maltratavam, eram os senhores, os donos de nós. A enfermeira-chefe nomeava um 
daqueles moleques de branco como encarregado e sumia do hospício. Só vinha se 
solicitada por telefone. Tinham em torno de dezoito a vinte e cinco anos, os tais enfermeiros. 
 Uma noite, ainda com meu braço muito dolorido, não conseguia dormir de dor, até meu dente doía. Trancado pelos noturnos no quarto particular, queria um comprimido para a dor. Comecei a gritar. Chamava e nada. Eles ficavam na sala de 
jogos, na sinuca. Podia morrer de gritar e eles não escutariam, nem dariam bola. 
 Peguei o criado-mudo de latão, tirei um pedaço de madeira do guarda-roupa e 
comecei a bater. O barulho foi imenso, acordei o hospício inteiro. Rapidinho, os dois noturnos chegaram ao quarto. Um deles de imediato jogou-me em cima da cama 
e, com o braço dobrado, apertava o meu pescoço contra a cama. 
— O que você está pensando que é, seu piá de merda! Fique quieto, se não te arrebento a cabeça! — Tinha mais de trinta anos, e esse noturno era formado. 
— Eu estou com dor no braço! Quero um remédio. 
— Dor, o caralho! se você fizer mais um barulhinho, vai para o cubículo! E agora 
vá dormir, se não quiser levar a pior. — Tinha os punhos cerrados sobre meu rosto. 
 Fiquei receoso ao ver a sua agressividade. Fecharam a porta e saíram. Deitado no escuro, revoltado com o que fizeram, levantei e comecei a andar de um lado para o outro. Só a claridade da lua entrando pelo vitrô. Estava enfurecido com aquele corno de pai e mãe.
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Peguei o criado-mudo e o encaixei deitado, entre a porta e a cama, de maneira que, ao abrir a porta, cederia só um pouco. A cama e o criado-mudo encostavam na parede, um encaixe que de forma alguma poderiam abrir. 
 Desmontei a pontapés o guarda-roupa e, com um pedaço de madeira respeitável que tirei dos destroços, comecei a quebrar o vitrô. Eram vidros aramados, difíceis de quebrar. Arrebentei também o banheiro. Fiz o diabo dentro daquele quarto. Os dois já estavam abrindo a porta, conseguiram apenas uma fresta, em seguida a porta prendeu-se no encaixe. 
— Pare com isso, seu piá de merda, você vai ver a hora que eu te pegar! — gritava o mesmo que havia me ameaçado. 
— Bota a fuça aí, seu corno, vou te esmagar os miolos, seu veado! — Batia na fresta e se colocassem a cabeça ali, eu ia moer mesmo. 
— Abra aí, Carrano, a gente só quer falar com você! — falava o outro enfermeiro. 
— Abro é a cabeça do primeiro! Eu queria só um remédio e vocês entraram aqui me 
ameaçando. 
 Não era sempre que ficavam dois enfermeiros, geralmente só tinha um noturno. 
Sentiram que com ameaças não conseguiriam nada. Trouxeram o Orlando, era meu amigo. Tentavam me convencer a abrir a porta. 
— Abra essa porta, eles não vão te fazer nada. Eu estou aqui também, pode abrir! 
— Vá à merda Orlando, não se meta nessa! 
— O cara, por que você está fazendo isso? 
— Esses putos. Eu estou com uma puta dor no braço e eles não quiseram me trazer 
um comprimido. Ficam lá, jogando sinuca. Eu arrebento o primeiro que colocar a fuça nessa porta! 
— Calma, cara! ninguém aqui tá a fim de brigar, não! Só abra a porta, eles vão te dar o medicamento. Abra a porta, Carrano, na boa, pode abrir.
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 Prometeram também não me levarem para o cubículo. Insistiram, prometeram... eu, burro, abri a porta. Ficaram pasmos com o estrago que eu tinha feito no apartamento. O vitrô aramado tinha os vidros pendurados pela parede e havia pedaços esparramados em cima da cama e pelo chão. Do espelho no banheiro, só o buraco. O guarda-roupa em fatias. Até o criado-mudo de latão estava amassado. 
 Eu estava bastante calmo. Mas os dois enfermeiros ficaram nervosos. O que havia começado tudo pegou justamente o meu braço infeccionado, torceu para trás das 
minhas costas, arrancando-me um grito de dor. Levaram-me para o cubículo, com o 
braço torcido, eu já não agüentava mais de dor. Só de cueca, fui jogado dentro daquele quarto nojento. 
 O cubículo devia ter uns quatro metros quadrados, ou pouco mais, com um buraco com dois lugares para colocar os pés: o banheiro. Havia uma abertura grande na 
porta, tipo uma janelinha, cabia até a cabeça nela. Um acolchoado malcheiroso e 
gorduroso e uma pequena espuma amarela que, também suja, estava mais para 
marrom. Apagaram a luz, dormi calmamente, só que dolorido. Fiquei quatro dias 
repousando as vinte e quatro horas. E servindo de exemplo também. Mas o comentário dentro do hospício era o meu grande feito. Com isso ganhei moral dentro do San Julian, a rnalucada toda fazia o que eu mandava. 
 Fui transferido dos quartos particulares. Fiquei na enfermaria número oito. Esta era a ala trancada, não tinha as mesmas regalias dos quartos. Tudo nesta ala era mais difícil. Tinha a hora em que eles abriam a porta para o pátio. Fila para comer, tudo o que os dos quartos não precisavam fazer. Enquanto estava no quarto particular, eu saía a hora que quisesse para o pátio, podia andar pelo hospital e almoçava primeiro que os da ala proibida. 
 Na minha enfermaria havia seis camas. Havia dezesseis enfermarias nessa ala, algumas com mais camas que a minha. Contavam-se uns oitenta pacientes, mais ou menos, só nessa ala.
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 Um banheiro grande com dois vasos sanitários e dois chuveiros, para todos. 
 Pela manhã, as faxineiras faziam a limpeza jogando creolina em todos os quartos. Na hora do almoço, às onze, quando não saíamos para o pátio, não dava para 
suportar o cheiro das fezes dos crônicos. O fedor se tornava insuportável, eles defecavam e andavam pelo corredor, as fezes escorrendo pelas barras das calças. 
Mantínhamos nossa enfermaria fechada ou encostada, pois não tinha tranca. 
Fechávamos para que eles não viessem a nossas camas, sujá-las de merda. Era um terror aquela ala. O mau cheiro nauseante. Não dava para ficar parado. Colocávamos lenços amarrados em nossas narinas, pois o cheiro era realmente insuportável. Às vezes algum dos cretinos de branco entrava naquele corredor e via que não estávamos mais agüentando o cheiro da merda. Solicitava a alguma das cozinheiras ou a alguma das faxineiras que jogasse mais um pouco de creolina. Elas o faziam com a má vontade estampada na cara. Quando o tempo era chuvoso, ficávamos trancados o dia todo, só saindo para o refeitório na hora das refeições. Nesses dias, morríamos de ânsia de vômito pelo mau cheiro dentro dessa ala de malditos. E os que colocarem em dúvida o que eu estou narrando, que façam igual a São Tomé: vão lá ver! 
 Não havia o canto dos malditos do Bom Retiro, e sim a ala dos malditos. Também era proibida a visita pública e dos familiares. Éramos muitos num espaço muito pequeno. Amontoados como feras contaminadas. As agressões aconteciam a todo o instante. Entre os crônicos, todos se agrediam. A maneira desumana como éramos obrigados a aceitar essa situação nos irritava. Aquela mistura de seres... que não poderíamos classificar, por suas aparências e atitudes, de humanos. Alguns eram verdadeiros zumbis, saídos de alguma tumba. Sujos, não tinham mais onde se sujar. 
 Epidemias de piolhos e muquiranas eram constantes no meio de tanta podridão.
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Formávamos, no conjunto, um magnífico cenário de filme de terror, oferecendo ao público cenas jamais captadas pelas câmeras de cinema. Só quem esteve lá poderia descrevê-las. 
 Começávamos a formar filas para o almoço em torno das nove horas da manhã. 
Sentávamos perto da porta enorme que nos mantinha escondidos do resto do hospício. Essa fila para o almoço também era um pivô para as porradas. Sentava-se ali e ficava-se horas, sem ao menos levantar-se para coçar o cu. 
 Os esforços pelos lugares na fila tinham um objetivo: os primeiros comiam rápido para depois voltarem ao fim da fila e comer novamente. Eles realmente tinham 
aquele famoso apetite químico. Uma fila de uns oitenta homens, numa ala fechada, 
cagados, rodando, tudo nos deixava com os nervos à flor da pele. E aí a Tortulina corria solta na galera. 
 Teve uma epidemia violenta de piolhos e muquiranas que me obrigou a desfazer-me da bela e comprida cabeleira. Raspamos os cabelos, todos de coco pelado. Para os que tinham somente piolho (era o meu caso), só creolina. Os que já tinham as 
companheiras muquiranas sugando seu sangue através do couro cabeludo... iodo neles! 
 Quando havia uma calamidade dessas, nós nos uníamos ajudando uns aos outros, 
dando banho nos cagados, raspando suas cabeças, colocando iodo. Tinha crônico que de tanto coçar as suas muquiranas, o couro cabeludo já virara uma cratera lunar, feridas espalhadas por quase toda a cabeça. Tudo era em nosso beneficio, pois se esperássemos a boa vontade deles, ficaríamos em piores situações do que poderíamos. Vivíamos em situação subumana. Vivíamos, não, vivemos. 
 Fora das pequenas epidemias, que nos atacavam como um todo, formávamos grupos, porque era mais seguro por causa das brigas. Brigas de grupos nunca aconteciam, e sim de dois ou três indivíduos de uma vez. Eram normais essas pequenas 
confusões de quebrar dentes, principalmente quando ficávamos o dia todo na ala, trancados.
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Colocavam tantos homens presos quanto possível num pequeno espaço. Embora a ala fosse grande com suas enfermarias. 
 Nós nos organizávamos em gangues. Quando pintava maconha, os mais chegados eram convidados a desfrutá-la. O mesmo ocorria com os pinguços, quando pintava uma garrafa de cachaça. Mas eu e o Orlando também participávamos das garrafas de pinga. Essas festas aconteciam geralmente à noite, quando a maioria já estava roncando. Nos trancávamos numa enfermaria, um vigia na porta. Fumávamos e 
bebíamos, sempre alguém trazia. Não estávamos nem aí se desse algum problema com 
os comprimidos ou com as várias drogas que nos entupiam... queríamos mais era 
esquecer que estávamos ali. 
 O Orlando, também viciado em pico, destilava uma mistura de comprimidos que 
roubava na enfermaria de remédios. Colocava aquele preparado na seringa descartável que apanhava na lixeira da sala de enfermagem. E se aplicava, me oferecia... eu tinha pavor de agulha. Combinamos cortar os pulsos, caso nossos familiares, na próxima visita, não nos tirassem de lá. 
 A criatividade para obter bagulhos e cachaça era infindável. Tínhamos uma corda com uma vasilha amarrada. Nos dias de visitas, alguns tinham amigos em 
Piraquara. Combinávamos um horário depois das nove da noite. Numa das janelas de 
uma das enfermarias, ficávamos aguardando. Batidinhas no vitrô: passávamos a 
corda de tiras de lençol — um puxãozinho e... recolhíamos a cachaça e o fumo. O 
hospício não tinha muro em volta e isso favorecia a operação. 
 As visitas também eram às quintas e aos domingos. O pacto entre o Orlando e eu 
estava de pé. Ele conseguiu uma gilete. Fomos do pátio para um dos quartos particulares. Nos trancamos. Ele sentou-se na cama e me ofereceu a gilete. Eu a coloquei no pulso. Esperei. E não consegui me cortar. Ele a tomou da minha mão e 
sem pensar passou-a no pulso. O sangue jorrou, eu saí dali gritando por socorro. 
Quando os enfermeiros tomaram conhecimento, corremos para o quarto e ele já estava com o outro pulso também cortado.
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Levaram-no para o hospital clínico. 
 Fiquei com a consciência pesada, pois a idéia fora minha, só que não tive coragem. Dois dias depois ele estava de volta com dois enormes curativos, um em cada pulso. Os fatos macabros aconteciam de repente. Tínhamos sempre alguma coisa cavernosa como tema. Alguém que fugiu, ou estava no lençol de força ou que tinha aberto a cabeça de alguém enquanto dormia. Não tínhamos fechadura dentro das enfermarias. Acordávamos com os gritos de algum crônico atacando alguém durante a noite. Era um sufoco. Trancávamos a nossa com o que dava — um pedaço de madeira, alguma coisa que fizesse barulho. Até hoje posso estar em sono profundo e se alguém toca na fechadura de uma porta, ou tenta abri-la, acordo. Isso me ficou da tensão que passávamos quando íamos dormir. 
 Um dos crônicos resolveu fazer uma greve de fome. Não comia, nem bebia, se 
recusava, só falava que queria ir embora, queria a mãe dele. Chamava-se Pelezinho, um crônico negro, gordinho, de cara aluada, baixinho e de feições infantis. Os enfermeiros que iam dar de comer a ele não tinham paciência. Jogavam comida mais em cima dele que em sua boca. Era comentário geral que o Pelezinho ia morrer. Já não conseguia mais levantar da cama, de tanta fraqueza. Queria a todo custo ir embora. Eu e Orlando resolvemos tentar fazê-lo comer. 
— Vamos colocar ele sentado! — Não queria. 
— Segura o ombro dele, Orlando! 
— Quero ir embora. 
— Pelezinho, está triste, está? — perguntava Orlando. 
— Quero ir embora. 
— Você só vai embora se você comer. Aí eles te deixam ir embora — disse. 
— Não quero comer nada. 
— Se não comer, você não vai embora ver sua mãe. Coma só esta colherinha... aí, amanhã, você vai ver a sua mãe.
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Coma, Pelezinho! Você quer sair? — dizia eu, com a colher de comida na mão. 
— Não estou com fome. 
— Você vai me deixar triste se não comer. Você quer que eu fique triste, Pelezinho? — soltava Orlando. 
 Com muita conversa e promessas, conseguimos fazer com que o Pelezinho comesse. Começamos a tratá-lo. A solidariedade dentro da ala dos malditos foi total. 
Todos davam a ele o que recebiam. Tangerinas, bananas, maçãs, doces... enfim, queriam que Pelezinho se recuperasse. Com poucos dias de atenção, o Pelezinho já estava comendo no refeitório. 
 O que aconteceu com o Pelezinho era mais que visível. Podiam enchê-lo de 
remédios e soros e ele, sem dúvida, iria morrer de tanto tédio. Seus parentes moravam em outra cidade distante, não vinham vê-lo com freqüência. Ele estava carente de coisas não produzidas pela química do homem. A carência do paciente psiquiátrico é outra: atenção, carinho e amor. Se não lhe tivéssemos dado isso, nenhuma droga teria salvado o Pelezinho de seu tédio, que era mortal. 
 Nem nossos familiares acreditavam em nós e em nossas histórias. Sabíamos que, 
para se tornar um crônico naquele lugar, era uma questão de tempo. Trocávamos informações sobre como nos livrar dos comprimidos. Temíamos os efeitos de certos 
medicamentos e as visitas dos cometas psiquiátricos. Nossos inimigos, os moleques de branco a quem tínhamos que chamar de enfermeiros e aceitar suas grosserias. Éramos só nós por nós!... O cara que fosse bobo ali, dançava. Éramos usados como mercadorias de consumo com fins lucrativos. Apenas lucrativos! 
 Consumíamos aos quilos as drogas químicas, num jogo puramente comercial em que os lucros são altíssimos. Usavam- nos como cobaias e, ao mesmo tempo, para suas 
experiências egocêntricas. Eram desumanos e altamente materialistas, sem nenhum senso de humanidade. Significávamos apenas lucros ao fim do mês.
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 Os castigos dos ajudantes de enfermagem eram temidos por todos. Muitas vezes me segurei para não fazer a cabeça de um deles rodar na porrada. Tínhamos vontade 
de surrá-los por nos tratarem tão mal. Gostavam de colocar a gente em lençol de força. Várias vezes fui parar no lençol de força. É um couro de vaca, com buracos para os braços e para a cabeça. De castigo por brigas ou por aprontar, o infeliz era preso no lençol, ficando dois ou mais dias nessa condição. Nesse couro, em forma de cobertor, com tiras e fivelas que são presas na cama, prende-se os pulsos e os tornozelos. Há também uma tira enorme, com fivela na ponta, para prender o tórax. Fica-se com pouca rnobilidade. Depois de certo tempo, os nervos do corpo começam a doer e, de tanta dor, ficam anestesiados. Preferia o lençol de força do que ser amarrado. Ser amarrado com tiras de pano na cama é bem mais dolorido. Elas começam a cortar a carne a cada vez que forçamos para sair ou tentar mudar um pouco a posição. Ficar amarrado por dezenas de horas é muito dolorido. 
 Encontrava-me então com dezenove anos. Desde a primeira internação, já fazia 
quase dois anos e meio que estava entrando e saindo de instituições psiquiátricas. Faria vinte anos dentro de três meses, tendo passado o Natal e o Ano Novo (e não era a primeira vez!) internado. Já estava me cansando disso. Será que sairia antes do meu aniversário? Fiz os meus vinte anos dentro do hospício. 
 Então, como era meu aniversário, achei que devia ficar feliz. Todos gostam de 
seu aniversário, só os que têm medo da velhice começam a detestar seus aniversários. Não estava preocupado com a velhice, estava puto por estar naquela porra! 
 Sentado em minha cama, derramei algumas lágrimas, não de peninha de mim. 
Levantei-me e fui para o corredor, queria dar porrada. Não foi difícil achar quem satisfizesse meu desejo. Fui parar no cubículo. Belo aniversário! Mas deixei uma coisa dentro da cabeça.
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Sou taurino e, quando coloco uma idéia, eu a faço, custe o que custar: eu fujo ou morro. 
 Iria sair dali de alguma maneira. Antes de ser internado no San Julian, eu estava de caso com uma mulher. Seu nome era Paula. Ela era quem lutava pelos meus direitos, inclusive enfrentando a ignorância de minha família. Suas tentativas de convencer meus pais a tirar-me daquele lugar acabou gerando antipatia de ambas as partes. Foi falar com o Dr. Alexandre Sech, em seu consultório na rua José Loureiro, no centro de Curitiba, várias vezes, mas não conseguiu nada concreto. Eu a cobrava com certa rudeza. Eu estava decidido a sair dali, mas não via como. 
 Cada vez mais rebelde dentro do hospício, já não sabiam mais que castigo me dar. Vivia sob o efeito da Tortulina. Enfiava o pedaço de pau na boca e, mesmo sob esse efeito, eu aprontava uma briga, apanhava, ou quebrava alguma coisa. Um dia peguei uma vassoura e saí pelo corredor estourando todas as lâmpadas que via. Fui amarrado a uma cama em um dos quartos. Os enfermeiros gostavam de tirar uma casquinha. Grudavam esparadrapos nos pêlos das minhas pernas e puxavam — eu lhes cuspia e levava mãozada na cara... eu xingava, cuspia, chorava de raiva! Podiam me arrebentar, eu estava cheio de tudo e de todos. Se algum crônico me abrisse a cabeça, seria um favor. O Orlando cortara os pulsos e iria cortar de novo se sua mãe não o tirasse daquele lugar nojento. Esquecido pelos próprios psiquiatras cometas. Sua mãe o tirou. Eu também iria fazer algo semelhante! 
 Sedavam-me ao máximo. 
 Mas, antes disso, aconteceu um fato interessante com um crônico de nome Sady. 
Eu o chamava de anjo branco. Ele era muito branco, parecia albino. Magro e alto, pele branca, muito alva. Braços longos e finos, uma figura diferente, não assustadora, até ingênua. Cabeça raspada por problemas de piolho. Tinha os olhos azuis, não falava, só grunhia. Os dedos das mãos eram marrons, escuros de xepas de cigarro. Suas investidas nas guimbas de cigarro jogadas fora eram tão divididas que poucos goiabas se arriscavam na disputa.
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 Arranhava os outros com suas longas unhas (todos tínhamos unhas grandes). Ele mordia também: uma fera com cara de inocente! Ninguém passava perto dele. A família já o havia abandonado. Era um esquecido. 
 Através de cigarros fui conquistando sua amizade. Dava-lhe cigarros inteiros, ele os devorava em poucas tragadas. Vinha atrás de mais, dizia-lhe não com gestos. Ele não gostava e vinha para cima. Eu o empurrava, ele me arranhava as mãos. Eu saía de perto dele, ele ficava grunhindo como um animal. Estava fazendo aquilo como um passatempo, o que mais sobrava ali era tempo. Em seguida dava-lhe outro cigarro, ele vinha, pegava-o. Fiz isso uns dois dias, ele começou a me seguir por todos os lados do pavilhão. Eu fumava, ele aguardava a xepa. Por alguns dias ele foi meu confidente. Sei lá se ele entendia alguma coisa. Eu lamentava, ele revirava o pescoço e, às vezes, seus olhos azuis. Na enfermaria eu deitava numa cama e o Sady sentava noutra. Ficava me olhando. Eu até dormia e, ao acordar, o Sady estava na mesma posição me olhando. Dava-lhe um cigarro, o coitado parecia um cão de guarda. Não era um cão. E sim um anjo branco de guarda. 
 Infelizmente um dia, eu, já nervoso com os moleques de branco, fui ao meu leito 
na enfermaria e Sady veio atrás. Joguei a carteira de cigarros em cima da cama para mudar de camisa. Sady, que sempre estava na cama ao lado, levantou-se e apanhou a carteira. Pedi que a devolvesse, ele não queria devolvê-la. Arranquei a carteira de suas mãos à força e o empurrei em cima da cama. Ele levantou e arranhou-me o rosto. Como um reflexo, ou sei lá o quê, comecei a esmurrá-lo. Ele caía na cama e levantava e vinha para cima... eu o esmurrava mais e mais, até tirar-lhe sangue da boca e do nariz. Quebrei-o de porrada. Desabafei em cima do coitado. Depois da merda feita, bateu-me uma dor tão grande no coração de arrependimento. Mas não adiantava mais, o que eu tinha conquistado, em poucos instantes destruí.
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 Tentei várias aproximações com o Sady, mas nada consegui. Ao aproximar-me, ele se afastava, um fato que recordo com dor. E o Sady? provavelmente não existe mais. Já não existia naquele tempo e agora deve já ter falecido por efeito de medicamentos. 
 Sedado ao máximo, conseguiam me controlar. Muitas vezes deixei de receber 
visitas, estava no lençol de força, no cubículo, ou amarrado em alguma cama. Mesmo sem conseguir andar direito, por causa dos efeitos da Tortulina, eu fazia das minhas. Reuni uns oito malucos, e os levei para a enfermaria dezesseis. Lá coloquei um lençol no vidro de uma das fileiras do vitrô de ferro no canto perto da parede. Com o salto do sapato comecei a quebrar o vidro aramado, com um mínimo de barulho. Um deles vigiava a porta. Os que estavam ali não eram crônicos. Já havíamos jantado. Quebrei duas fileiras de vidro, deixando limpas as grades. Amarrei um cobertor — puxem malucada! Puxaram tanto que arrebentaram... não a grade, o cobertor. Outro cobertor arrebentado, amarramos dois. Arrebentaram. Não adiantava, a grade só ia arrebentar com mais cobertores. 
— Af!... os enfermeiros irão descobrir este vitrô. Se alguém me dedurar, depois vai ter. 
 Pela manhã, o Airton, que gostava de bancar o chefinho, reuniu minha patota. Tinha descoberto o estrago todo. 
— Quero saber quem foi que quebrou o vitrô. Eu já sei quem foi, mas quero que vocês me digam! — Estava forçando. — Se até o meio-dia vocês não me contarem quem foi que fez aquela zorra, vai todo mundo tomar uma três-por-um, vai todo mundo dormir! E amanhã ninguém vai receber visitas. 
 Ele já sabia, mas queria desmoralizar-me. Eu, de alguma maneira, tinha conquistado o respeito dos demais internos, por não abaixar a crista para eles, os de branco. 
 Foi acusado até o senhor Manoel, coroa de uns cinqüenta anos que estava ali para fugir de um rolo com a Justiça (tinha sido ou estava envolvido no desvio de um caminhão de carga).
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Gente boa, não estava na nossa encrenca — o Airton achava que estava. Ao meio-dia, sem almoçarmos, fomos reunidos outra vez. Ninguém dedurou. Fomos uns dez dormir ao meio-dia. Isso foi piada por um bom tempo dentro do hospício. O San Julian deveria colocar lá uma plaquinha com o meu nome. 
 Em outra briga, na sala de bilhar, bati com um taco nas costelas de um interno 
metido a esperto. Fui parar no cubículo. Colocavam-me só de cueca e esqueciam de me tirar de lá. Sidrak comentava: 
— Quando o Carrano está preso, este hospital fica tranqüilo, todos ficam em paz. 
 A faxineira, uma senhora que limpava a sala de jogos e também o corredor dos 
cubículos, simpatizava comigo e aconselhava-me. 
— Você tem que se acalmar, senão nunca irão deixar você ir embora. Não te darão 
alta! 
 Eu a escutava com a cabeça no buraco que havia na porta, mais por educação. Ela sempre me dava uns cigarrinhos mataratos. E naquele dia ela me deu cigarros e a 
caixa de fósforos, que ficou comigo. Quando um dos enfermeiros de branco veio 
trazer o almoço perguntei quando iam me tirar dali. 
— À tardinha — respondia ele. À tardinha, vinha trazer o café. 
— À noitinha — dizia ele. A noitinha vinha e eu jantava e dormia lá mesmo. 
 Já estava indo para o quinto dia. Não estava mais agüentando ficar naquele cubículo imundo. No dia seguinte a faxineira limpou tudo e deixou alguns cigarrinhos. Verifiquei a descarga do banheiro, onde tinha de ficar de cócoras para cagar. Coloquei a espuma dobrada num canto. Estraçalhei todo o acolchoado. Deveriam ser umas dez horas. Estavam no pátio, a julgar pelo barulho. Verifiquei novamente a descarga. Acendi um palito de fósforo. Encostei na espuma altamente inflamável. Corri para a descarga e, ajoelhado, com a cabeça entre as pernas e o braço esticado na alavanca da descarga, eu a puxava, fazendo descer a água.
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As chamas já estavam fortes, o calor na minha pele. Minha cueca começou a pegar fogo, arranquei-a, jogando longe. O calor e a fumaça estavam queimando. Tudo estava passando pela minha mente... minhas viagens... Meu Deus! Está tudo escuro, estou para perder os sentidos. Minha pele está cozinhando. Uma voz... — Saia daí, Carrano, saia!... vamos, porra! saia, Carrano! Puro reflexo, fui engatinhando para a porta. E senti mãos me apanhando e puxando-me para fora do quarto. O fantasiado de branco, com o extintor na mão, não conseguia entrar dentro do quarto, de tanto calor e fumaça. Atordoado, deu para ver o Sidrak. 
 Refeito do susto, vi mais um, com outro extintor. Saí pelo pátio, nu e preto 
pela fumaça. As cozinheiras e faxineiras riam por eu estar nu. Suas ignorantes, eu podia estar morto! Tentei pegar um paletó de um dos malucos, recusou-se, comecei a dar- lhe uns bofetes. Outro fantasiado de branco veio cobrir-me. Um dos psiquiatras estava ainda dentro do hospício. Não era o Dr. Alexandre. Examinou minhas queimaduras. 
— Nada de grave, só um pouco de pele queimada — disse- me. Não era ele quem estava lá dentro. Fiquei sabendo depois que, quando deram o alarme de fogo, o animal, o filho de uma peste do Sidrak, pegou tranqüilamente o extintor e foi lentamente pelo pátio todo, que era comprido, até os cubículos. E disse: 
— Se o Carrano quer se matar, que morra logo. 
 Ele tinha razão. De alguma maneira eu iria sair daquele lugar. Foi o meu passaporte para a liberdade. Naquela mesma semana, meus pais me tiraram.
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O PERÍODO MAIS NEGRO DE MINHA VIDA. DEPOIMENTO DO PAI
 O QUE ME LEVOU A INTERNAR o meu filho Austregésilo no Hospital Psiquiátrico Bom Retiro foram informações de um amigo, que era policial. Eu lhe mostrei um pacotinho que encontrei, e ele me disse que era maconha. Fiquei desesperado, pois acompanhava pela imprensa as manchetes assustadoras sobre drogas. Esse amigo prontificou-se a me auxiliar na internação, afirmando que o Bom Retiro era 
excelente no tratamento de pessoas que fumam maconha. 
 Procurei o encarregado, que não era o psiquiatra que tratou (em termos) do meu 
filho. Expliquei-lhe que havia encontrado maconha no bolso do meu filho. Ele me indagou sobre o comportamento dele e eu disse-lhe que sua rebeldia estava chegando a um ponto incontrolável. Afirmou-me que essas atitudes poderiam ser efeitos das drogas. Mais assustado fiquei. Segui o conselho do meu amigo. Internei o meu filho. 
 Foi com dor no coração que vi puxarem-no para dentro daquele pavilhão. Mas 
estava confiante que iriam tirar meu filho desse maldito vício. Eu não poderia vê-lo durante umas semanas. Disseram-me que esse período era fundamental para o tratamento. Mas que eu poderia levar-lhe cigarros, enfim, o que ele precisasse. Nesse período, exigido pela direção do hospital, ficamos todos preocupadíssimos com o andamento do tratamento. Não podíamos vê-lo. As informações dos enfermeiros e do encarregado do hospital eram animadoras.
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O psiquiatra, Dr. Alô Guimarães, num período de quase um ano de internação de meu filho em sua instituição, apenas uma vez conversou comigo. Tudo era com o encarregado. Esse encarregado, que era o administrador do Bom Retiro, era quem nos dava as informações. 
 Quando recebemos autorização para visitá-lo, meu filho reclamou sobre tudo o que estavam fazendo com ele. Foi taxativo quanto ao tratamento pelo qual estava 
passando: o eletrochoque. 
 Foi nessa ocasião que tive a oportunidade, depois de muita insistência com o 
encarregado, de trocar duas palavrinhas com o psiquiatra, Dr. Alô Guimarães. Ele foi firme ao dizer que o tratamento era necessário, e que nós ignorávamos os efeitos do eletrochoque e que poderíamos ficar tranqüilos, que ele sabia o que estava fazendo. 
 Fiquei confiante, pois o Dr. Alô Guimarães era considerado um profissional respeitável. 
 Meu filho continuou a tomar eletrochoque por muito tempo, pois ignorávamos esse tipo de tratamento. Com o passar dos dias, quando íamos visitá-lo, ele parecia cada vez mais sedado. Não falava coisa com coisa, não se entendia quase nada do que dizia! O nosso desespero em vista do sofrimento pelo qual ele estava passando naquele hospital chegou ao auge. Mas ele tinha que abandonar o vício de fumar maconha. Naquela época, assim eu pensava. Não se pode descrever o que uma família passa nesses momentos difíceis e terríveis de incerteza quanto à recuperação do filho. 
 Na verdade, minha gente não conhecia os efeitos maléficos que causam às pessoas os tóxicos em suas diversas modalidades. Seria ótimo que as autoridades, que 
tratam desse assunto, criassem, por meio de livretos didáticos, um serviço para instruir tanto crianças como adultos sobre o que realmente causa a dependência, que requer um internamento em lugares confiáveis, enfim, tudo sobre todos os tipos de tóxicos. E não essa generalização sobre o assunto drogas que só nos deixa inseguros.
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Como conseqüência, não sabemos como agir com nossos filhos quando deparamos com tais situações, o que nos leva a cometer erros irremediáveis. Foi o caso da internação do meu filho. 
 Nossos parentes deixaram de freqüentar a nossa casa. O motivo que os levou a 
tomarem essa atitude foi o envolvimento do meu filho com drogas. Proibiram até meus sobrinhos de freqüentarem minha casa e, em especial, de terem qualquer contato com meu filho. Nunca foram sequer lhe fazer uma visita no Sanatório. Eu e minha esposa ficamos muito magoados com essas atitudes. 
 Minha esposa não estava mais agüentando ver o filho naquele estado. Precisou de tratamento clínico, com calmantes e soníferos. Ficou em crise, o que lhe gerou, mais tarde, problemas cardíacos. 
 O estado da família era de degradação. Eu não conseguia trabalhar direito, começou a faltar dinheiro, a situação estava desesperadora. Com o filho num hospício, os parentes desapareceram. A minha esposa sofria até desmaios, não comia. Tudo estava desmoronando em meu lar. 
 Quando procurava saber da melhora do meu filho, o que me diziam e o que via nas visitas me decepcionavam. Ele estava cada vez mais distante, nem mais reclamava 
do que acontecia dentro do hospital. Completamente sedado nos dias de visita, nem conseguia abotoar uma camisa, falava lento, andava lento, não dizia mais nada com nada. Depois de alguns meses de internamento, resolvi tirá-lo, contrariando a orientação do Dr. Alô Guimarães. 
 Em casa, ele se recusava a sair, a ver gente. Quando algum vizinho vinha nos fazer uma visita, ele se trancava em seu quarto. Começou a comer no quarto e a esconder-se até de nós. Aquele quarto era seu único mundo. 
 Resolvemos então fazer-lhe a vontade, que era voltar para o sanatório. Nem mais sabíamos o que fazer. Reinternei meu filho, na esperança de que ele se recuperasse de seus tratamentos.
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Ele não era mais um ser vivo. Não falava com ninguém, não ouvia ninguém. Só queria ficar no quarto. 
 Mais alguns meses de internação no Bom Retiro e ele voltou a raciocinar um pouco melhor. Tirei-o então desse famigerado Sanatório. Minha vontade era processar o 
Dr. Alô Guimarães. 
 Mas o filho continuava ainda lento de reflexos. E quando começou a melhorar, 
passou a nos agredir verbalmente. Sua revolta explodiu contra nós. Brigava com os vizinhos. Fazia escândalos quando saíamos com ele. Ficou completamente incontrolável. Tentou até tocar fogo em nossa residência. Achei melhor então achar outro hospital psiquiátrico, onde não utilizassem o eletrochoque. E por uma briga que ele se envolveu no centro de Curitiba, com uns policiais, resolvi interná-lo no Hospital Psiquiátrico San Julian, em Piraquara, para um tratamento mais leve do que recebera no Bom Retiro.
 Hoje eu sei que essas instituições psiquiátricas não passam de verdadeiras ratoeiras, onde usam nossos filhos como cobaias. Naquela época, infelizmente a nossa ignorância sobre os chamados tratamentos psiquiátricos era total. 
 Já dentro do San Julian, a agressividade do meu filho não diminuía quando íamos visitá-lo. Chegou ao ponto de vir me cumprimentar com uma xepa de cigarro entre os dedos, queimando minha mão. Sua revolta contra nós doía-me muito. Mas o que eu mais queria, meu Deus! era sua recuperação, que durante esses anos de internamento, parecia nunca chegar. Ficou novamente sedado com o passar dos meses. Mesmo sedado, porém, ele aprontava dentro do San Julian. Quebrou um dos apartamentos, suas vidraças e batia nos outros internos. Em muitas das minhas visitas, deixei de vê-lo, pois estava de castigo, em algum lugar. Depois contou-me que ficava, às vezes, amarrado com tiras de pano na cama, por um ou dois dias. Preso em cubículos ou num tal lençol de força. Com o passar do tempo, voltaram as promessas de melhoras, agora do psiquiatra Dr. Alexandre Sech, de que ele ia se acalmar, que ia se recuperar.
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 Nem eu nem minha esposa tínhamos mais controle emocional. Aconselharam-me a procurar alguns centros espíritas. Eu os procurei. Estava completamente desnorteado. Até que, por um milagre, que Deus me perdoe, meu filho quase morreu 
queimado! Ele ateou fogo em um dos cubículos onde já estava preso por alguns dias. Essa sua atitude desesperada acordou-me para o que eu estava fazendo com ele. Na mesma semana resolvi retirá-lo dessa instituição. Jurei a mim mesmo que, se fosse para ele morrer, que não morreria dentro desses centros de torturas, essas instituições psiquiátricas que “dizem tratar” de pessoas em condições financeiras inferiores. 
 Foi o período mais negro que passei nos meus setenta e nove anos de vida.
Israel Ferreira Bueno
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POSFÁCIO, ASSIM SE PASSARAM DEZ ANOS
 HOJE, PASSOU-SE UMA DÉCADA da publicação da primeira edição deste livro. Na época, ele foi retirado das livrarias devido a um pedido feito formalmente à 
Editora da Universidade Federal do Paraná, em 1990, pela família do psiquiatra 
Alô Ticolaut Guimarães. A família conseguiu impedir sua distribuição em Curitiba, abafando, assim, a repercussão e o impacto que a obra causaria à imagem imaculada do psiquiatra. Tudo que é proibido, no entanto, gera curiosidade. A imprensa local e nacional ofereceram-me s e s de divulgação. 
 A obra, porém, continuava fora das livrarias. Ameacei uma greve de fome nas 
escadarias da Universidade se essa situação se perpetuasse e a anunciei através da imprensa local. Depois de assembléia programada pela Universidade Federal do 
Paraná, com votação a meu favor pelos alunos, a UFPR tomou a seguinte decisão: 
“A responsabilidade do que está descrito na obra é exclusiva do autor, portanto, quem quer que se sinta ofendido com a obra que processe o responsável direto pela mesma.” Levaram sete meses para chegar a esta decisão. Sete meses que fiquei sem poder vender meu livro. 
 Não me processaram inteligentemente. Com o pedido de cassação feito à Editora da UFPR, a família, como o pai deles, classificou-me como interno de seu laboratório, o Hospício Bom Retiro. Os doentes mentais, os idiotas, os alienados, as bestas dessa família acabaram abrindo caminho para a divulgação da obra.
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Com os milhões de dólares que a família possui, entretanto, conseguiram boicotar, por 
baixo do pano, a distribuição dos exemplares, apoiados pela Federação Paranaense 
de Psiquiatria, que também sentiu-se ameaçada. Essa federação é totalmente omissa com o que ocorre nos hospitais psiquiátricos, conivente com os crimes e torturas que acontecem dentro dos hospícios paranaenses. 
 Fui obrigado a mudar-me para São Paulo, pois em Curitiba não teria mais clima 
para dar continuidade a meu trabalho. As portas estavam cerradas para mim, graças às garras das famílias dos antigos coronéis que ainda dominam essa cidade. Aquela foi a melhor coisa que poderia ter ocorrido naquele momento de hostilidade, no entanto. Cheguei a São Paulo no começo de 1991, com uma mão atrás e a outra segurando alguns exemplares do livro, equivalentes ao pagamento dos 10% de direitos autorais. Minha situação resumia-se ao seguinte: possuía uma pequena quantidade de livros, mas os fotolitos estavam de posse da Editora da UFPR. Havia mudado a direção da editora, inclusive o reitor, e me era negada a liberação dos fotolitos do livro. 
 O Dr. Alô Ticolaut Guimarães fora professor dessa Universidade, senador do 
Estado do Paraná, presidente do Jóquei Club, professor da Velha Psiquiatria Ditatorial Alemã dentro da casa que havia lançado o meu livro, a Editora UFPR, e sua sobrinha ou filha, não me lembro, era agora vice-reitora da UFPR. A salada russa estava pronta, e bem apimentada para o meu gosto. 
 Tudo se encaixava a favor deles. Eu, um zé-ninguém, cabeludo, ex-louco ou louco ainda, e fumando maconha adoidado, denunciando a máfia da psiquiatria e seus 
crimes contra mlhares de pacientes em meu estado. 
 Esses episódios estão documentados em artigos de jornais e programas de televisão dos quais participei na época. Restava-me uma única estratégia para enfrentá-los sozinho, pois ainda não tinha conhecimento do Movimento da Luta Antimanicomial: botar a boca no mundo.
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A imprensa, graças a Deus, era a única que me dava credibilidade. 
 Em São Paulo, o pessoal do Movimento da Luta Antimanicomial conhecia o meu trabalho. Facilitou-se, assim, toda uma guerra na qual pensava estar sozinho. 
Fui muito bem recebido e apoiado incondicionalmente. Resgatamos, com a ajuda do 
MLA (Movimento da Luta Antimanicomial), os fotolitos que estavam em poder da 
UFPR. Comecei a trabalhar com o movimento para a ampliação e divulgação dos 
“trabalhos substitutivos” aos hospícios brasileiros. E um trabalho voluntário e que faço com muito amor e garra até hoje. Enquanto existir um hospício, um chiqueiro psiquiátrico no Brasil, serei incansável. Até extirparmos, por completo, esse câncer da sociedade brasileira. 
 Sobrevivi até 1999, em São Paulo, vendendo edições do meu livro, que a Editora 
Lemos editava. Ao pessoal da Editora Lemos, meu agradecimento de coração por me apoiar na reforma psiquiátrica no Brasil. Meu livro era vendido em palestras, faculdades, escolas, encontros nas igrejas, feiras culturais, shoppings, condomínios, favelas nas quais fazíamos palestras sobre saúde mental e higiene. Onde me convidassem, lá estava eu com uma mochila cheia. 
 Com base nessa experiência posso afirmar: o brasileiro, seja ele de um condomínio fechado da classe A ou favelado, adora ler. Vendi as edições sem a colaboração sequer de uma única livraria. Outro que vendia seus próprios livros, 
e o fazia muito bem, era nosso saudoso e incomparável Plínio Marcos. 
 No dia 13 maio de 1998, entrei com a primeira ação indenizatória por erro 
médico-psiquiátrico da história forense brasileira. Estou processando a Federação Espírita do Paraná, por ser proprietária do Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro. Só por esse motivo, pois sou adepto de muitas teorias espíritas e tenho o maior respeito por aquela entidade religiosa.
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Estou processando também o Hospital de Neuropsiquiatria do Paraná, o San Julian, e dois médicos psiquiatras: um já falecido, o Dr. Alô T. Guimarães, e o diretor clínico do Bom Retiro, Dr. Alexandre Sech. Somando-se a fortuna das famílias desses médicos, 
chegaremos, sem dúvida, a uma das grandes somas do Brasil. Devem existir duas ou 
três Ferraris na cidade de Curitiba. Uma delas o Dr. Alexandre Sech deu de presente para um de seus filhos. Só o preço dessa Ferrari já seria a minha indenização. 
 Para o leitor entender melhor o que estou relatando, farei, mais adiante, um 
pequeno histórico: o da construção de Instituições Psiquiátricas jamais vistas na história de outros países. Mostrarei ainda como essas instituições, em apenas um século, vêm enriquecendo certos grupos no Brasil, à custa da exploração e do sofrimento humanos. 
 A minha ação indenizatória encontra-se nas seguintes condições: perdi na 
primeira instância, pois o Sr. Juiz de Direito, e não da Justiça, Dr. Guilherme Luiz Gomes, da 1ª Vara Cível do Fórum de Curitiba, por forças maiores e ocultas, julgou o processo apenas como prescrito. Isso depois de um ano de esgotamento de ambas as partes. Minha advogada, a Dra. Vera Lúcia Vassouras, que fez uma belíssima exposição dos fatos, ficou indignada com a cara-de-pau desse juiz de Direito, em simplesmente prescrever a causa, sem maiores explicações. Se no ponto-chave da ação, momento em que minha advogada tinha pedido a condenação de uma das partes, a qual não se defendeu dentro do prazo estipulado pelo próprio juiz de Direito, o Sr. Juiz de Direito tivesse cumprido a lei, teria de condenar a parte infratora e dar ganho de causa para nós que movemos a ação. Está tudo dentro da Lei do Código Civil Brasileiro. 
 Em 1990, em processo formal na UFPR, a família de meus acusados na ação pediu a cassação de meu livro e conseguiu retirá-lo de circulação das livrarias de 
Curitiba por mais de sete meses. No próprio livro, repito várias vezes que quero ser indenizado pelas torturas sofridas.
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Fui vítima dessa família duplamente, mereço ser indenizado por isso também. Ela me impediu de vender meu trabalho, a busca do direito cível do meu sustento. Tudo isso o Dr. Juiz de Direito tampouco considerou. 
 O código da Lei Civil é claro: “A vítima, ao colocar em público formal ou 
informalmente, escrito ou com testemunhas, seu infortúnio e o seu desejo de indenização, causado por esse infortúnio, um novo tempo deve se iniciar para prescrição de seus direitos cívicos de reparação.” E ponto final. A lei é clara, clara e legítima... está no Código Civil Brasileiro. Devemos, então, rasgar o Código Civil Brasileiro? 
 No meu caso, a lei não está sendo cumprida pelo seu representante direto. Fui 
torturado. Crime de tortura não prescreve, Sr. Juiz de Direito. Há presos políticos que estão sendo indenizados agora, mais de trinta anos depois dos fatos ocorridos. Eles também foram torturados como eu, na mesma época da ditadura militar. E tem mais, Sr. Dr. Juiz de Direito e não da Justiça, eu era menor de idade quando fui submetido a 21 aplicações de eletrochoque. A voltagem das aplicações do eletrochoque é de 180 a 460 volts nas têmporas. Minha base craniana possui uma fissura, como se eu tivesse fraturado o crânio. Os especialistas em eletroconvulsoterapia a reconhecem de imediato. Esta é uma seqüela física comum nos pacientes submetidos a várias aplicações de eletrochoque. Fui drogado e altamente sedado, o que afetou boa parte da minha saúde física e mental, por muitos anos. Deixaram-me, por vários anos, defecando e urinando em mim mesmo, pois havia perdido o controle das minhas funções fisiológicas. Se me recuperei é porque era um adolescente cheio de saúde, antes de ser vítima das torturas e do corpo médico psiquiátrico, o responsável por diagnósticos equivocados. Posso apresentar centenas de atestados de profissionais da psiquiatria para comprovar que meu caso foi um erro grosseiro de diagnóstico e de tratamento psiquiátrico. O Dr. Juiz de Direito nos negou também esse procedimento na ação. Ele poderia até indiciar os psiquiatras, mas resolveu prescrever a ação de maneira inexplicável. 
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 Tenho menos de dez dentes na boca. Este é apenas um dos efeitos da alta sedação. E estou para perder mais. Eles estão caindo. Se isso tudo para o senhor, Dr. 
Juiz de Direito Guilherme Luiz Gomes, não é TORTURA, então o que é ser TORTURADO? E se fosse o seu filho de 17 anos? Se fizessem com ele tudo que fizeram comigo, como o senhor julgaria esse processo? Simplesmente prescreveria, 
descumprindo a lei como o senhor o fez? 
 Nós, do Movimento da Luta Antimanicomial e 17 entidades, nacionais e internacionais de direitos humanos, ficamos surpresos e indignados com essa decisão. Mandamos moção de repúdio pela decisão inconstitucional e duvidosa do Dr. Juiz de Direito, Guilherme Luiz Gomes. Ficamos, além de indignados, com dúvidas quanto à seriedade do Sistema Jurídico Paranaense perante várias entidades de direitos humanos, tais como: Teotônio Vilela; Tortura Nunca Mais; Franco Basaglia, que tem sua sede na Itália, com representação no Brasil; Conselho Federal de Psicologia; Sindicato dos Jornalistas de São Paulo; Faculdade PUC/SP; USP/SP, que tem indicado meu livro na área de Psicopatologia Clínica; Instituto Sedes Sapientiae; Instituto de Saúde SES/SP; Sindicato dos Psicólogos de São Paulo; Associação de Usuários e Familiares Anima e Pinel; LAPSO da USP; e todos que acompanham o desenrolar desta ação e torcem para que ela seja avaliada e analisada sem deixar pairar dúvidas na decisão final.
 O fato de a família do médico ter entrado com pedido de cassação do livro junto 
à Editora da Universidade Federal do Paraná, em 1990, pela qual exijo ser indenizado, é de conhecimento público. Qualquer Juiz de Direito ou advogado recém-formado sabe que uma nova contagem de tempo para a prescrição tem de ser retomada. Ou seja, o fato ocorreu em 1990 e pela Lei do Código Civil Brasileiro posso pedir indenização até 2010.
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 Estou recorrendo ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. A nossa ação está 
sendo examinada criteriosamente pelo digníssimo Dr. Juiz de Direito Moraes Leite, do Tribunal de Justiça do Paraná. Já me informei sobre esse cidadão brasileiro e as informações que obtive me levam a crer que é uma pessoa digna. Confio na Justiça do Brasil, espero que o Dr. Juiz de Direito Moraes Leite possa cumpri-la e não deixe dúvidas quanto ao seu parecer final. Só exijo que a justiça seja feita, mais nada. 
 Independentemente do resultado dessa primeira ação de indenização por erro 
médico psiquiátrico e torturas mentais e físicas, espero que não seja a última do gênero. Com toda a minha força de cidadão e de homem, conclamo a todos que passaram por experiências semelhantes à minha, que se sentiram humilhados, foram torturados e agredidos em seus direitos de cidadão, nas centenas de hospitais psiquiátricos, nas casas de torturas e não de cura, que recorram à Justiça e peçam indenizações. Não tenham medo de se expor nem vergonha de terem sido internados em hospícios. No Brasil interna-se até por fome, roubo, agressão e brigas de rua e outros fins... o que interessa é o lucro para a instituição. Por isso, não tenham vergonha de dizer que foram internados. Lutem por aquilo que vocês julgam que é seu direito. Lutem bravamente até sentirem que foram indenizados, não somente no aspecto financeiro, que é muito importante, mas 
também em seu íntimo. Enquanto não se sentirem justiçados interiormente, nunca se sentirão recuperados de tudo que sofreram. Lutem! Exijam! É direito de vocês. 
 Nunca percam a confiança de que o que vocês estão fazendo é digno, é direito. 
Cabe à Justiça reparar esses abusos e torturas, pois ela permitiu que fizessem isso conosco. Nunca fiscalizou esses estabelecimentos. Só quem foi paciente dessas casas de torturas sabe o que é ser considerado um inútil, sem ao menos ter o direito de ser ouvido. Irei às últimas conseqüências judiciais em busca daquilo em que acredito, com toda a minha compreensão. É o meu direito sagrado de cidadão.
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 Financeiramente, ainda não tenho onde cair morto. Fui lesado na minha formação profissional. Levei longos nove anos, depois da última internação, para me 
recuperar das seqüelas. Na realidade, foram sete retornos nos mais de três anos em que fiquei internado e 21 aplicações de eletrochoque aplicado nas têmporas numa voltagem que varia de 180 a 460 volts. Se houver apenas o desmaio, aumenta-se a carga, até o corpo ter a convulsão. 
 Retirei do livro Introdução aos métodos de tratamento físico em psiquiatria, de Sargant W. e Siater E., as seguintes informações sobre a eletroconvulsoterapia (ECT): 
 “Fraturas que podem ocorrer na aplicação da eletroconvulsoterapia na hora ou 
tempos depois: corpos vertebrais; fraturas da coluna; terço superior do úmero; fêmur; deslocamento do maxilar; mas essas fraturas não devem ser encaradas como objeções ao tratamento e seu prosseguimento. Se a respiração não começar após a violenta sacudidela do dorso, algumas compressões rítmicas do pulmão a estimularão novamente. Uma pequena voltagem provocará apenas um choque frustro, isto é, um desmaio do paciente sem atingir a convulsão. Alguns choques frustros dados em uma mesma sessão podem causar irregularidades cardíacas, podendo ocorrer uma parada cardíaca. A respiração pode ser restabelecida e o paciente geralmente se recupera em um minuto. Não há nenhuma prova de que a variação da corrente elétrica seja de algum valor terapêutico, desde que seja suficiente para causar a convulsão. Complicações pulmonares são raras, distúrbios de memória são muito comuns, e algumas vezes apresentam um aspecto agudo, contudo, testes de inteligência, memória etc... indicam que, na maioria dos pacientes, existe um leve grau de dano.” Segundo estudos da USP, a eletroconvulsoterapia pode antecipar o mal de Alzheimer em 10 anos, efeitos da queima de neurônios. 
 Ainda não constituí uma família, mas tenho quatro filhos, um com cada mãe. E um deles nasceu no dia 22 de agosto de 2000.
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O nome dele é Hiago Carrano Bueno. Moro na casinha dos fundos, no terreninho da mamãezinha, de favorzinho. Tenho problemas na coluna causados pelas convulsões dos eletrochoques. Sofro de pesadelos constantes e fortes dores de cabeça. Tenho seqüelas pelo corpo. Nossa, estou parecendo um senil! Continuo briguento, chato. Continuo cabeludo, dizem que estou por fora. Mas meu cabelo é coisa que eu curto. Estou desabafando!... “O homem não foi feito para a derrota; o homem pode ser destruído, mas não vencido.” Ernest Hemingway. 
 Continuo dando murro em ponta de faca, mas eles não sabem que uso luvas do mais puro aço. E, se for necessário, mato e morro por meus direitos. Que os meus inimigos fiquem cientes, interpretem como quiserem. E se quiserem conferir, que venham para o abraço. Só não me dêem um abraço na covardia e na traição, mandando alguém fazer o serviço. Quem já puxou mais de três anos de hospícios... puxa 30 anos de prisão tranqüilamente. “O homem mata e morre, se preciso for, quando ele tem a certeza de seus direitos.” 
 Perguntado ao Rodolfo Konder por que não esquecia o que — a ditadura militar fez com ele, respondeu: “Quem foi torturado nunca esquece.” 
 A avaliação que faço, depois de dez anos do lançamento de meu livro, é que não conseguimos atingir os nossos objetivos mais básicos: a verdadeira humanização do “tratamento psiquiátrico” em nossa sociedade. Para nós, ainda é uma utopia. Sabemos que é muito difícil mudar a cultura manicomial predominante em nossas comunidades, começando por quem prepara os futuros profissionais na área da saúde mental. Alguns desses professores da área de psiquiatria, psicologia e saúde mental estagnaram no tempo. Continuam passando aquela psiquiatria moralizante, punitiva, sedativa e teimam em manter uma vigilância ditatorial em cima dos pacientes. Afastam-se e ignoram as verdadeiras necessidades do ser que ali está, procurando, clamando por ajuda. Perderam a sensibilidade, nunca lhes disseram que a sensibilidade tem de ser cultivada, adubada.
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Engessaram-se no sistema arcaico, presos a teorias e teses que há décadas não são revisadas ou sequer cogitadas. 
 A psiquiatria estagnou. Esses doutores professores continuam prepotentes, indiferentes às mudanças, acomodados dentro de seus pseudoconhecimentos. Passam 
essas visões mofadas aos seus alunos. Muitos defendem o eletrochoque como cura para o depressivo agudo, não considerando outras terapias menos violentas e traumatizantes. Essas outras terapias podem ser mais demoradas, mas não queimam os neurônios do paciente em depressão. 
 Tudo isso é irrelevante para esses psiquiatras ultrapassados, desinteressados, acomodados, endeusados pelos seus diplomas de doutorado pendurados na parede. A grande maioria desses professores passa para os estudantes de medicina, psiquiatria, psicologia e saúde mental a falsa idéia de que os hospitais especializados em loucura são um mal necessário. Como se algum tipo de mal fosse necessário! Omitem desses estudantes os “trabalhos substitutivos”, que, como a palavra já diz, substituem a necessidade da instituição especializada em loucuras. 
 Continuam omissos e coniventes com o sistema de empilhar os pacientes nas 
instituições psiquiátricas brasileiras. São coniventes também com a sedação química indiscriminada, o isolamento, o eletrochoque, os castigos, o desleixo no “tratamento”. E a ditadura da grande maioria dos profissionais, da grande maioria não, de todos que aceitam trabalhar nesses chiqueiros psiquiátricos, é a cumplicidade com esse sistema arcaico, cruel e criminoso. Praticam-se, sim, atos de covardia e crimes contra o cidadão em sofrimento mental, dentro dessas casas especializadas em tortura física e mental. Se não tivéssemos outras soluções de tratamento, ainda poderíamos pensar em aceitar a continuação dos chiqueiros psiquiátricos, os hospícios no Brasil. Mas existem interesses, e o mais forte deles é o econômico, que corrompem a maioria desses profissionais da psiquiatria.
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Ficam seguros dentro dessas instituições, prescrevendo medicação, sedando pacientes, até mesmo aqueles profissionais que passam pouquíssimas horas lá dentro. E no fim do mês recebem gordos salários. Cometem atos criminosos, receitam drogas para as pessoas, não se importando com elas. Isso, na minha concepção, é crime. Ou drogas são só maconha, cocaína, craque e outras consideradas ilícitas? 
 Quando entramos numa drogaria, estamos num lugar de drogas. Existem apenas dois tipos de drogas: as químicas e as naturais. Drogar uma pessoa ao ponto de ela 
perder o controle de suas funções fisiológicas, deixá-la defecando em si mesma, é crime ou não? Ou crime é só o traficante da favela que vende os seus baseadinhos? Quem está destruindo mais rapidamente a saúde do usuário, o traficante da favela que vende drogas (veja bem, ele vende) ou esses médicos psiquiatras irresponsáveis que receitam drogas fortíssimas sem nenhum cuidado? Qual é o pior bandido? Drogar os pacientes é uma atitude corriqueira dentro dessas instituições psiquiátricas. Dopar para não incomodar. Que hipocrisia, não? 
 E o pior é constatar que a maioria dos psiquiatras que trabalham nessas instituições abusa desses métodos. É claro que esses profissionais estão escondidos entre os muros das torturas que cercam os hospícios. Lá dentro, esses profissionais comprados, que mamam nas tetas do sofrimento humano, calam-se como covardes diante dessas torturas. Seu salário é mais importante, não podem criticar o sistema de funcionamento da instituição. Preferem acovardar-se a perder o emprego, o belo faturamento do mês, o carrão do ano etc. Daí o fato de considerarem o hospital psiquiátrico um mal necessário. 
 Pior que isso é a omissão social, o desinteresse das comunidades em exigirem as 
soluções definitivas para essa questão vergonhosa que, há anos, estamos denunciando; é o desserviço social que os hospitais especializados em psiquiatria, os hospícios, realizam. E nós temos as soluções, só não temos a sensibilidade da comunidade brasileira, que é omissa, acomodada e indiferente.
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 Desabafo, indignação, revolta, sinto tudo isso e muito mais, entretanto, ninguém 
pode dizer que o que escrevi acima não é a mais pura realidade. Para que possamos nos entender melhor, caro leitor, vamos entrar um pouquinho na história das nossas “Instituições Especializadas em Doença Mental”. Escrevi Especializadas em Doença Mental, não usei as palavras tratamento ou cura ou recuperação.
Resumo histórico de nossas instituições psiquiátricas
 Um livro que recomendo é Psiquiatria infantil brasileira — Um esboço histórico, 
de Francisco B. Assumpção Jr. Segundo o autor, em 1891, o hospício de São Paulo já não comportava o atendimento psiquiátrico do estado. Em 1892 o Governo iniciou um projeto de assistência aos pacientes psiquiátricos: abestados, alienados, debilóides, dementes, retardados e outros termos usados na época. A construção de um novo hospital, asilo, foi iniciada em 1895, nos arredores da cidade, junto à estação do Juqueri, com capacidade de 800 leitos. Em 1901, os primeiros abestados, alienados, debilóides, dementes, retardados, doentes mentais, do sexo masculino, entraram na nova instituição, que possuía, além dos serviços médicos, jardim, pomar, arborização, criação de vaca, galinha, porco, para serem cuidados por dementes, viabilizando os custos da instituição. 
 Em 1907, a população do Hospital Juqueri já ultrapassava em mais de 100 pacientes a sua capacidade inicial. A construção de novas colônias fez-se necessária. 
 O Hospital Colônia do Juqueri foi o primeiro do gênero em que a exploração da mão-de-obra dos pacientes foi um processo normal. Isso fez com que outras instituições do gênero acatassem esse procedimento: a exploração comercial, não como tratamento terapêutico, mas como mão-de-obra escrava. 
 Enquanto isso, o modismo de uma nova ciência tomava conta dos grandes cafés do Rio de Janeiro e de São Paulo. Era fino e sinal de elevada cultura discutir a psiquiatria alemã, francesa, Freud, Jung, Adler.
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Geofilho
Entre os anos de 1920 e 1940, houve muita especulação sobre encontrar o próprio ser e outros assuntos do gênero. Mas uma coisa ficou muito bem definida desde logo: tinham achado mais uma “galinha dos ovos de ouro”. 
 No ano de 1941, o Brasil já possuía um parque manicomial de causar inveja. Eram 23 hospitais psiquiátricos públicos e 39 pertencentes a grupos particulares. Note que os hospitais particulares eram quase o dobro, pois mostraram-se uma fonte de renda. Transcrevo uma citação de Adler extraída do livro O mito da doença mental, de Thomas Szasz: Os psicanalistas e as suas especulações são quase que infinitas: examinam criminosos; fazem pesquisas bioquímicas e neurofisiológicas; especulam a respeito de fatos e eventos históricos; aprovam e desaprovam teses, diagnósticos; criam e recriam rótulos; aprovam e desaprovam pessoas... etc. Os psicanalistas estão tentando abranger tudo na Psicanálise. 
 Esses senhores, doutores nos mais profundos conhecimentos humanos, atingiram, com suas especulações, elevados graus sociais, jamais vistos por outra profissão em nossa sociedade ocidental. A crença cega da sociedade nesses profissionais 
facilitou a construção de mais instituições especializadas em loucura. Passados 20 anos, os hospitais psiquiátricos públicos no Brasil eram 54, em 1961. E os particulares, de grupelhos, os privados, já somavam 81. Com o golpe militar de 1964, esses profissionais da psiquiatria e da loucura encaixaram-se como mão e luva. Em sete anos, o número de hospícios particulares simplesmente mais que triplicou. Em 1971, os hospícios do governo militar eram 72 e os dos grupelhos da psiquiatria, os hospícios particulares especializados em loucura, subiram para 269. Mas o auge dessa máfia da Psiquiatria Nacional Brasileira, que abraçava e dormia com as torturas da ditadura militar, deu-se na década de 1980. 
 Os profissionais da psiquiatria e da loucura tinham facilidades junto ao sistema 
financeiro da ditadura militar para a construção de suas instituições particulares de extermínio. Ganhavam ou compravam os terrenos, e todo o material necessário para a construção dos hospícios era obtido a preço de banana.
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Havia uma regra básica para esses financiamentos serem bem facilitados e efetuados: os profissionais da psiquiatria e da loucura tinham de aceitar, sem cogitações, pacientes presos pela política da ditadura militar. Para ser mais claro: tinham de aceitar os presos políticos, os transviados, os subversivos, os putos, os homossexuais, os negros, os cabeludos, os drogados e todos os que criticavam o regime ditatorial ou resistiam a ele, O famoso AI-5 usou os hospícios particulares que recebiam pelo INPS, como os hospitais públicos, e abusou deles. Muitos desapareceram dentro desses chiqueiros psiquiátricos. Absurdo? Não, realidade. 
 Em 1998, nós do Movimento da Luta Antimanicomial denunciamos mais de 30 mil covas clandestinas. Dissemos covas, não corpos. Havia cova com mais de 10 corpos. Corpos de mulheres, crianças, recém-nascidos e homens. Um cemitério 
clandestino dentro de uma instituição psiquiátrica de extermínio, dentro do 
Hospital Psiquiátrico Juqueri, em São Paulo. Na ocasião, a imprensa nacional não 
nos deu a cobertura que esperávamos, apenas publicou minúsculos artigos em alguns jornais. Será que existe somente um cemitério clandestino em todas as nossas instituições psiquiátricas tupiniquins? E se fizermos algumas devassas nos hospitais psiquiátricos particulares e públicos, o que será que encontraremos? 
 Em 1996, por intermédio da deputada estadual de São Paulo, Célia Artacho, do 
Prona, fizemos uma CPI nos hospícios paulistas e encontramos inúmeras irregularidades, descuidos e falta de higiene, como, por exemplo, pacientes com defeitos físicos empilhados como se fossem lixo, sujos de urina e fezes. 
 No hospital psiquiátrico de Pilar do Sul, região de Sorocaba, tínhamos denúncia 
de maus-tratos aos pacientes. O que encontramos lá dentro, entretanto, foi mais assustador que isso, deixou-me com pesadelos por uns quatro dias. E eu que pensava já ter visto tudo em matéria de terror psiquiátrico! O bloco C dessa instituição era só de pessoas com defeitos físicos violentos.
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Um dos psiquiatras que fazia parte da comissão da CPI virou um paciente que estava nu e engatinhando pelo corredor e este urinou como um cachorrinho de barriga para cima. Só que a urina vazou por um furo que ele tinha no pênis, de tanto se arrastar pelo chão. Havia camas com até quatro pacientes, com pernas e braços atrofiados, defeitos congênitos dos mais variáveis e imagináveis, gemendo, vomitando a comida que tinham acabado de almoçar. 
 Nesta hora, a deputada me pediu um tempo. Acompanhei-a para fora daquela ala, que mais parecia a sala de... No pátio, havia mais pacientes nus, misturados a fezes e urina, deitados num sol de mais de 30 graus. Tudo isso foi documentado pela TV Bandeirantes, que estava conosco na visita surpresa da CPI dos manicômios. No final, tudo acabou em pizza novamente. Esse hospício continua em evidência e nada mudou. 
 Em 1981, o auge dos hospitais psiquiátricos particulares, de grupelhos de psiquiatras e associados, atingiu o número de 357 hospícios particulares. E, nesses 10 anos, a ditadura militar construiu apenas um hospício, pois os hospitais psiquiátricos particulares estavam trabalhando exatamente como o governo militar ordenava. Somando 73 hospitais psiquiátricos públicos. Nesta mesma época, foram construídos mais 88 hospícios particulares... Estranho, não? Um total de 430 hospitais psiquiátricos no país. Com mais de 600 mil internações por ano — a maior despesa com saúde na história do Brasil —, o que resultou, certamente, em muitas novas fortunas na área da psiquiatria. Segundo dados do Ministério da Saúde, essas despesas com as instituições psiquiátricas brasileiras ultrapassavam, e muito, um bilhão de dólares por ano. Vejam bem, não eram bilhões de cruzeiros, eram de dólares mesmo. Todo esse dinheiro gasto 
somente na Previdência Social, sem contar as internações particulares. 
 Esses valores foram retirados de um artigo publicado na revista Veja, escrito pelo psiquiatra do Inamps, Dr. Eduardo Aquino, intitulado “A fabricação da loucura”, em 22/2/1989, com a confirmação, na época, do Ministério da Saúde.
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 Montamos com isso o maior parque manicomial do mundo. Esta vergonha é 
brasileira, com um número de vitimados entre mortos e inutilizados que é impossível calcular. Basta o caro leitor fazer uma visita a algum hospício perto de sua casa para confirmar que atrocidades como essas existem até hoje. Isso se você conseguir entrar, é claro. A entrada de pessoas estranhas é proibida, pode atrapalhar o “tratamento”. 
 Talvez o cálculo mais aproximado de vitimados pelo sistema manicomial brasileiro seja com o holocausto, dentro dos campos de concentração nazistas. Acho que 
nossas vítimas já ultrapassam essa comparação. Os campos nazistas duraram dois ou três anos, enquanto as nossas instituições especializadas em loucura continuam inutilizando e enterrando pessoas. 
 O número de mortes nas 267 instituições gira, atualmente, em torno de três mil 
pacientes por ano. Em 14 anos do Movimento da Luta Antimanicomial conseguimos 
fechar instituições e denunciar médicos psiquiatras por maus-tratos aos pacientes. Fechamos alguns hospícios nesses anos de luta. E se Deus nos ajudar fecharemos também essas 267 instituições cancerígenas que infestam a saúde mental do povo brasileiro. O sofrimento mental não é uma doença fisica que, se a pessoa não tratar, pode morrer, por isso o índice de mais de três mil mortes por ano em nossos hospícios é considerado altíssimo. Algo muito errado continua acontecendo lá dentro, escondido pelos muros das torturas e da morte. Na época da ditadura esse número era, em média, de 10 a 15 mil mortos por ano. O número de inutilizados ainda não é oficial. Entre os pacientes que eram meus companheiros e que não conseguiram sair, a grande maioria já está enterrada há alguns anos. Esses dados foram levantados, em 1998, pelo Movimento da Luta Antimanicomial em parceria com o Ministério da Saúde. 
 Outro dado surpreendente é o custo das 267 instituições psiquiátricas nos dias de hoje. Consomem a terceira maior verba do SUS, para apresentarem um desserviço social, com finalidades escusas e, muitas vezes, criminosas.
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Violências contra você, leitor, que um dia pode estar lá dentro ou ter alguém querido internado pelo SUS. Digo pelo SUS porque as clínicas particulares cobram diárias que variam de R$ 300,00 ao absurdo de até R$ 1.200,00, por dia, podendo chegar até a mais que isso. A meu ver, esses valores são um verdadeiro assalto aos nossos direitos de cidadão, visto que pagamos os mais caros impostos do mundo. Há famílias que vendem o carro, o apartamento, fazem empréstimos bancários, e sei lá mais o que, para darem a 
grana de mão beijada a esses psiquiatras. 
 Acreditem, a única coisa que irão fazer com sua mãe, filho, esposa lá dentro 
dessas clínicas particulares é empurrar-lhes um monte de drogas. O golpe é muito 
bem dado, eles têm especialistas para tudo: massagistas, professores de educação física, astrólogos, gurus, cartomantes, sem contar as salas de jogos, de TV a cabo, de cinema. Só não ouvi falar em teatro, mas não duvido de que logo teremos clínicas psiquiátricas contratando peças teatrais. 
 Segundo dados do Ministério da Saúde do ano 2000, as despesas com partos e 
cesarianas em todo o Brasil atingiram R$ 260 milhões. Com as 267 instituições psiquiátricas no Brasil, o custo do SUS no mesmo ano foi de R$ 490 milhões. Isso sem contar as internações particulares. Todos esses dados estão disponíveis no Ministério da Saúde. 
 Essas instituições psiquiátricas praticam há mais de um século a exploração 
econômica, esbanjando dor e sofrimento em quem tem o azar de cair lá dentro. E estão em plena atividade, fabricando mais loucos, inúteis, dementes, desgraçando famílias e financiando fortunas de grupelhos da psiquiatria, que já possuem um cartel muito bem organizado. Eles são filiados à FBH (Federação Brasileira de Hospitais), financiam campanhas políticas, têm compromissos com senadores, deputados, vereadores, compram pessoas, são proprietários de shoppings centers e associados a esses estabelecimentos, são donos de fazendas, atuam nas bolsas de valores no mundo todo, compram juízes de direito e juízes de futebol, tornam-se presidentes de jóqueis-clubes, senadores, atuam no Senado, nas câmaras federal, estaduais e municipais, são contra a Reforma Psiquiátrica já aprovada pelo Senado e sancionada pelo presidente FHC.
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E mais, enfrentam as leis, não as deixando sair do papel, pois têm cacife para garantir que não sejam cumpridas. Sabemos que o poder do dinheiro é que faz as leis em nosso querido Brasil. Os juízes de direito, nossos advogados e os representantes diretos da lei também sabem disso. 
 Nós, simples cidadãos da comunidade brasileira, continuamos omissos. E, se somos omissos, somos também coniventes. Ficamos acomodados, sentindo-nos inúteis, de mãos atadas, aceitando a situação como um bando de cordeiros, de covardes, acomodados em nossos mundinhos medíocres, sem fôlego para dizer um BASTA, só 
assistindo. Que povo mais lindo, maravilhoso, festivo, alegre. Isso tudo com mais de 60% da população não tendo o que comer e, quando o faz, comem uma vez por dia. E a oitava economia do mundo na mão de, no máximo, 15% da população, porque o restante trabalha para pagar o que comeu ontem. Ressaltando que esta última observação vale para os que têm emprego hoje, porque amanhã não sabem se terão. E uma pena que os únicos brasileiros que merecem parabéns, neste momento, são os do Movimento Popular dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Os únicos com coragem de lutar e morrer por seus direitos de cidadão. Lutam bravamente por um pedaço de terra e para terem mais pão e dignidade em suas mesas.
Movimento da Luta Antimanicomial
 A luta antimanicomial é um movimento popular com mais de meio século de 
existência em todo o mundo. Éramos conhecidos pelo nome Movimento da Antipsiquiatria. Muitos dos considerados gênios da humanidade condenavam os métodos e o sistema de internar e drogar os pacientes dentro dessas instituições 
especializadas em psiquiatria.
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 Einstein, o pai da física moderna, referindo-se aos chamados “tratamentos 
psiquiátricos”, declarou: “Creio que a moda atual de aplicar os axiomas da Ciência à vida humana não é apenas um erro completo, mas também tem algo de repreensivo.” Na minha opinião, o que ele queria dizer com a palavra “repreensivo” era cadeia para os adeptos dessa prática criminosa. 
 Os movimentos populares, que sempre lutaram pelos direitos do cidadão brasileiro, desapareceram com a ditadura militar nos anos subseqüentes ao golpe. 
Foram todos proibidos em território nacional. A retomada do Movimento de Luta 
Antimanicomial deu-se no Brasil, em 1986, com uma pequena reunião de profissionais da saúde mental, revoltados com o que assistiam dentro do hospital psiquiátrico Anchieta, em Santos, São Paulo. 
 O Hospício do Anchieta não perdia em nada para as outras instituições, no que 
diz respeito às torturas, ao descaso dos profissionais, à lavagem que os pacientes comiam. Eles dormiam em meio a fezes, urina, piolhos, que, aliás, todos tinham. As “lavagens” e as sujeiras eram as únicas terapias, acompanhadas dos coquetéis de drogas, que os pacientes eram obrigados a ingerir. Idênticas no famigerado Juqueri, de São Paulo; Adauto Botelho, Bom Retiro, San Julian e outras, de Curitiba; Colônia Juliano Moreira, do Rio de Janeiro; Hospício São Pedro, de Porto Alegre; Colônia Psiquiátrica de Barbacena, de Minas Gerais e assim por diante. Em várias casas de extermínio brasileiras. 
 Em 1984, o juqueri ficou conhecido nacional e internacionalmente como a Cidade dos Esquecidos. Os pacientes em superlotações eram até amarrados em estacas no meio do pátio. Comiam verdadeiras lavagens e outras terapias que a sujeira, a omissão social e a criminalidade profissional davam como tratamento. É importante lembrarmos sempre essas mazelas sociais para tentar criar um pouco de vergonha na cara de toda uma sociedade omissa e conivente com essa podridão que persiste nas nossas instituições psiquiátricas.
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Na década de 1970, o Juqueri, com capacidade para 2.800 leitos, tinha, muitas vezes, mais de 18 mil pacientes internados. Eles dormiam em pé e nos pátios, ao relento. 
 Isso tudo é recente, por isso não podemos deixar de registrar. Todos conhecemos 
as atrocidades dos nazistas contra os judeus e a humanidade. Existem documentários, exposições anuais sobre o assunto, filmes, enfim, o povo judeu não deixa a humanidade esquecer essas atrocidades. Este também é um dos papéis do Movimento da Luta Antimanicomial: mostrar e relembrar esses crimes psiquiátricos, que são também crimes contra a humanidade, ainda hoje praticados. A diferença é que lutamos contra um inimigo talvez mais forte que os nazistas: o desinteresse e a omissão do povo brasileiro em relação a esse assunto. As pessoas só se interessam por essas questões quando o problema bate a suas portas. 
 Tenho feito palestras em várias faculdades na área de psicologia e visto a alienação desses futuros profissionais da saúde mental. Muitos deles nunca ouviram falar no Movimento da Luta Antimanicomial, do Projeto de Lei Federal que já foi aprovado em seis estados brasileiros referente à Reforma Psiquiátrica no Brasil (embora não esteja sendo cumprido). Em relação aos “trabalhos substitutivos” aos hospícios, é o mesmo que falar na palavra insofismável. Que futuros profissionais irão ser? Alienados e omissos com o sofrimento dos pacientes dentro dos chiqueiros psiquiátricos. 
 Todos sabemos que o ensino universitário, em muitas áreas, é digno de piada. A 
culpa é da própria instituição de ensino e da conivência e comodismo dos alunos, que também não aprenderam a exigir os seus direitos. E não são somente as universidades públicas que estão desgastadas e arcaicas, as particulares também. Já que esses estudantes pagam, deveriam exigir melhores professores. Estes têm obrigação de, no mínimo, se manterem atualizados em suas áreas. Faça um teste com seus professores, perguntando de quem é o Projeto de Lei sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil.
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Se algum ou todos eles não souberem, diga que leu meu livro, O primeiro Projeto de Lei da Reforma Psiquiátrica no Brasil foi realizado pelo Movimento da Luta Antimanicomial, com a apresentação, na Câmara Federal, pelo deputado federal do PT de Minas Gerais, Sr. Paulo Delgado, em 1989, e aprovado por unanimidade pela Câmara Federal. Depois disso, foi embargado no Senado por interferência dos filiados à FBH (Federação Brasileira de Hospitais), sob a pressão econômica dos donos dos hospícios. Sofreu inúmeras emendas e debates entre nós do Movimento da Luta Antimanicomial e os donos dos hospícios. Foram 12 anos de debates e ações do Movimento da Luta Antimanicomial para a aprovação do Projeto de Lei de Reforma Psiquiátrica no Brasil. No dia 10 de abril de 2001, a sociedade brasileira deveria ter feito festividades em todo o território nacional. Foi finalmente sancionado pelo presidente da República, o senhor Fernando Henrique Cardoso, o projeto de Lei de Reforma Psiquiátrica do Brasil. Que prioriza os “trabalhos substitutivos” aos chiqueiros psiquiátricos no país. Agora é lei... Graças a Deus é lei, vamos fechar os hospícios no Brasil, e expandirmos os “trabalhos substitutivos” em todo o território nacional. Só 
depende de nós.
Trabalhos substitutivos aos hospitais psiquiátricos
 Os “trabalhos substitutivos” já são Lei Federal e podem ser exigidos por toda a 
comunidade brasileira. A exigência pode começar com o Prefeito, Secretarias de Saúde Municipal e Estadual, Câmara Municipal, Governo do Estado e Governo Federal. Dentro do Projeto de Lei da Reforma Psiquiátrica, é colocado que cada região, em debates com os usuários, familiares, técnicos e comunidade, deve decidir as suas necessidades na questão da saúde mental, debater suas prioridades referentes ao tema, organizar-se e atuar na implantação desses trabalhos.
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 Descreverei os “trabalhos substitutivos” para os quais dei uma pequena contribuição no que diz respeito à realização, defesa e divulgação, nos anos em que morei na cidade de São Paulo. O Movimento da Luta Antimanicomial tinha como 
prioridade expandir o máximo possível esses trabalhos. Nas palestras que faço, 
julgo essencial falar dos “trabalhos substitutivos”: única solução concreta, viável e humana para solucionarmos, de uma vez por todas, a questão da saúde mental em nosso país. 
 É importante salientar que os referidos trabalhos já funcionam em São Paulo há 
mais de 10 anos, com atendimento gratuito para a população. O custo para os cofres públicos chega a ser 50% menor do que o do atual sistema de confinamento e sedação dos hospícios. Eles representam ainda um retorno ao convívio social do paciente em torno de 80% e têm a admiração e o apoio total da OMS (Organização Mundial da Saúde). Só depende de nós exigirmos sua implantação com a maior urgência. Existem verbas suficientes, e, se não forem usadas para implantação dos “trabalhos substitutivos”, essas verbas continuarão indo para os donos de hospícios. Vamos nos unir para implantarmos esses “trabalhos substitutivos” com a ajuda de Deus. 
a) Internação apenas em casos de crise do paciente e em hospitais gerais. 
 Existem apenas dois casos em toda a psiquiatria nos quais o paciente precisa ser 
internado: quando ele está colocando em risco a própria vida ou a de terceiros. Nestas circunstâncias, ele é internado em um hospital geral e acompanhado por uma equipe de interprofissionais (termo usado por membros do MLA) composta pelo médico psiquiatra, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, com a possibilidade de visitas abertas de familiares e amigos diariamente, se assim o paciente desejar. Outro aspecto importante é dar o direito ao paciente de se negar a ser tratado por determinado profissional, desde que já esteja fora da crise. Ficará internado somente enquanto a crise durar e não como ocorre nas instituições psiquiátricas, que seguram o paciente por 
meses, a fim de lucrar à custa do SUS. 
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Quando a crise está controlada, o paciente pode continuar o tratamento sem internação. Em São Paulo, funcionam 18 hospitais gerais que aceitam a internação psiquiátrica. A importância do atendimento psiquiátrico nos hospitais gerais está ligada ao fato de que um hospital geral não rotula socialmente o paciente de louco, como ocorre na internação em hospitais psiquiátricos. 
b) Hospitais Dia e Noite, Naps, Caps. 
 Alguns técnicos acham que a internação deve ser feita nos Caps e Naps (Centros e Núcleos de Atendimento Psicossocial) no caso de o paciente entrar em crise. 
Nesses centros e núcleos, que funcionam geralmente em casas grandes ou prédios 
de dois andares, alugados pela Prefeitura do Município com a verba do SUS, há em 
torno de seis a dez leitos para pacientes em crise e o atendimento é mais aconchegante e informal que nos Hospitais Gerais. Esses são detalhes técnicos sobre os quais prefiro não opinar. Acho que cada município deve discutir o que é mais viável e melhor para o paciente. O importante é o bem-estar de cada um deles. Nos hospitais Dia e Noite, Naps e Caps, os pacientes são entregues durante o dia e saem no fim da tarde. Lá dentro, eles são acompanhados também por uma equipe composta por profissionais de várias áreas, incentivados a muitas terapias ocupacionais e à sociabilização. 
 No caso de prescrição de algum medicamento, o paciente também o toma com o 
acompanhamento de toda a equipe, que discute com o psiquiatra a respeito da medicação. O importante é que, na equipe, não haja a figura daquele psiquiatra dono da verdade. O paciente está sob a responsabilidade de todos, por isso todos devem emitir sua opinião e ser respeitados da mesma forma. Os familiares são convidados a participar do tratamento e da socialização dos pacientes em atividades festivas, palestras sobre saúde mental, reforma psiquiátrica. Na urgência dessas reformas e dos trabalhos substitutivos em todo o país, os pacientes são ouvidos, discutem, interagem com os colegas, familiares e técnicos, e se respeitam, preocupando-se uns com os outros.
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Os pacientes defendem com o fervor de suas almas esses trabalhos, pois a grande maioria deles já esteve internada em hospícios. 
 É muito bonita a convivência dos pacientes dentro dos Naps e Caps. É emocionante a consciência de cidadania e de direitos sociais passada para eles. Essa é a 
razão pela qual 80% dos pacientes retornam ao convívio social. Eles se sentem importantes, úteis, e não doentes, inúteis, como nos fazem pensar os hospitais psiquiátricos, onde as chances de virar um morador ou morrer lá dentro são também de 80%, segundo dados do Ministério da Saúde. 
 É claro que nem tudo é uma maravilha. Alguns pacientes entram novamente em 
crise, mas o problema é trabalhado lá dentro para diminuir o sofrimento deles. 
Outros terão de ser acompanhados e tratados pelo resto de suas vidas. A falta de verbas, as mudanças políticas causadas por novas candidaturas, muitas vezes financiada pelos donos dos hospícios que lutam pelo fim dos “trabalhos substitutivos”, são alguns dos problemas enfrentados nos Centros e Núcleos de Atendimento Psicossociais. Mas, embora haja todos esses fatores negativos, eles vêm se mantendo bravamente, com o apoio da comunidade e de algumas ONGs internacionais. O importante é dar continuidade ao nível de atendimento e bem-estar dos pacientes, para que sejam tratados com dignidade, respeito, 
valorização e humanidade. 
 O Movimento da Luta Antimanicomial vem estudando uma Lei Orgânica para os municípios, de maneira que obrigue os prefeitos eleitos a dar prosseguimento em 
trabalhos de cunho social, conquistados pelas comunidades organizadas. 
Freqüentemente, vemos muitos prefeitos acabando com direitos adquiridos em 
gestões anteriores só porque foram conquistados por inimigos políticos. 
 Enfrentamos essas patifarias em Santos, em São Paulo e também em outras cidades que desenvolviam “trabalhos substitutivos”.
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A mudança de prefeitos, a cada eleição, causa sempre muita apreensão aos técnicos, 
pacientes, familiares, enfim, a todos os envolvidos nesses trabalhos. Dependendo de quem se elege, pode haver perseguições políticas. As verbas do município para os trabalhos substitutivos são retiradas, os técnicos são transferidos, o atendimento se torna precário, os passes de ônibus dos pacientes são retirados, o aluguel deixa de ser pago pela prefeitura e outras centenas de mesquinharias. Tudo isso e muito mais acompanhei nos nossos trabalhos substitutivos, inclusive o fechamento de muitos Naps e Caps, mas agora com a Lei Federal isso pode amenizar, se ficarmos organizados e unidos. 
c) Centros de convivência e cooperativas. 
 Em São Paulo há 16 unidades. Elas funcionam em parques, praças, centros 
culturais e centros da cidadania. Esses centros constituem-se de uma sala onde 
uma equipe visa ao resgate e ao convívio social do paciente e também ao atendimento da população que mora ou freqüenta os arredores, e onde também podem ser comercializados produtos fabricados pelos próprios pacientes como terapias ocupacionais. Com finalidades múltiplas, esses espaços comprovam que o diferente 
também pode conviver na sociedade. O custo é praticamente zero, tendo em vista 
os beneficios causados. 
d) Atendimento psiquiátrico e psicológico em postos de saúde. 
 Muitos problemas dos pacientes podem ser resolvidos nos próprios postos de saúde localizados perto da região em que vivem. Uma ou duas consultas evitariam, em 
casos simples, que a família muitas vezes entrasse em uma discussão mais acirrada e optasse pela internação. Alguns exemplos mais comuns são os problemas de alcoolismo, drogas, desemprego e outros tantos que causam sofrimento mental. 
No posto, encontraríamos alguém que pudesse pelo menos nos ouvir e nos dar algumas palavras de incentivo ou quem sabe acender aquela luz que, em alguns momentos, não conseguimos enxergar sozinhos.
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A intenção é colocar o profissional da saúde mental o mais próximo possível da população e facilitar a todos esse trabalho que é digno e necessário para uma sociedade tão carente como a nossa. Não sou, em hipótese alguma, contra o psiquiatra, o psicólogo ou qualquer outro profissional da área da saúde mental. 
 Sou contra, sim, aqueles maus profissionais da área de saúde mental que só visam ao lucro financeiro, menosprezam e torturam pacientes dentro desses chiqueiros 
psiquiátricos; os indiferentes com as reformas psiquiátricas, omissos e covardes 
que sobrevivem e fazem seus pés-de-meia às custas do sofrimento humano, pois 
estão vivenciando uma psiquiatria arcaica, ditadora, criminosa. 
e) Lares abrigados, casas terapêuticas. 
 Todos sabemos que o grande número de pacientes abandonados por seus familiares nos hospícios é uma realidade. Geralmente, os familiares vão visitar o paciente durante alguns poucos anos e depois os abandonam à sorte de ele morrer mais 
cedo. Para esses esquecidos, os lares abrigados e casas terapêuticas são uma necessidade. 
 Essas casas são também alugadas pelo SUS, e nelas moram, aproximadamente, de 5 a 10 pacientes. Eles têm visitas diárias de um membro da equipe formada por 
diferentes profissionais que os atendem em suas necessidades e também têm acesso 
a todos os trabalhos substitutivos. 
 Os trabalhos substitutivos já constituem lei federal e fazem parte das reformas 
psiquiátricas aprovadas pelo Senado e assinadas pelo atual Presidente da República. Cabe às comunidades exigirem de seus prefeitos o cumprimento da lei e das Secretarias Municipais de Saúde, os trabalhos substitutivos. Eles dispõem das verbas do Governo Federal para a reforma psiquiátrica. Daí a importância de as comunidades se organizarem em Conselhos Populares de Saúde Mental e cobrarem os trabalhos substitutivos para os hospícios da região em que vivem.
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Como a própria palavra “substitutivos” diz, significa substituir, não ser mais necessário. 
 A Organização Mundial da Saúde recomenda que, para cada 100 mil habitantes, são necessários apenas 10 leitos para internação psiquiátrica. Muitos municípios 
necessitariam de apenas um Naps ou Caps Dia e Noite, com alguns leitos para internação do paciente em caso de crise. 
 Não abriremos mão de nenhuma de nossas convicções. Os hospitais psiquiátricos mostraram, pela sua própria história, que são instituições que visam apenas aos lucros, não se importando com o sofrimento humano. E provaram também que não são mais necessários. Pelo contrário, são um desserviço social e têm como finalidade 
única o enriquecimento de grupos. 
 Com a metade dos investimentos do SUS, que paga R$ 490 milhões de reais por ano aos hospícios brasileiros com a arrecadação dos impostos pagos por nós, podemos, 
sim, investir nos trabalhos substitutivos e participativos da comunidade. 
Podemos ter um sistema humano de atendimento aos portadores de sofrimento mental, deficientes físicos, drogados, alcoólatras e a qualquer outro paciente que se encontre em dificuldade, que necessite de ajuda profissional, de solidariedade. Um exemplo é o Centro de Convivência Chico Mendes, em São Paulo, que oferece o futebol como uma das atividades terapêuticas para pessoas com deficiência visual. O futebol é jogado numa quadra e a bola é feita com chocalhos. 
 Poderíamos contratar bons e dedicados profissionais pagando salários dignos para que pudessem prestar o melhor de seus serviços à comunidade. Os Naps e Caps 
funcionariam dia e noite em vários bairros de todos os municípios do país. Os centros de convivência e cooperativas funcionariam empregando pacientes e pessoas da comunidade. As cooperativas seriam instituições com fins também lucrativos de subsistência financeira para os pacientes que fossem trabalhar ou não, pois a sua finalidade deve ser terapêutica.
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Os produtos que fossem produzidos seriam vendidos e os lucros divididos entre eles. 
 O Caps, situado na rua Itapeva, 700, em São Paulo, perto do Masp e da Av. 
Paulista, funciona como uma cooperativa. Os técnicos montaram uma cozinha que, 
além de alimentar os usuários que ali permanecem o dia todo, é utilizada para venda de marmitex em vários escritórios comerciais da região. Os lucros são divididos entre os pacientes usuários. Eles montaram também um salão de beleza em parceria com uma rede de salões. Fazem também trabalhos artesanais orientados por pessoas contratadas ou voluntárias da própria comunidade. 
 Os familiares desses pacientes vêm buscá-los à tarde. Embora muitos pacientes, 
em poucos dias, já comecem a vir sozinhos no Centro de Atenção Psicossocial. 
Eles têm direitos a passes de ônibus e metrô e, em algumas cidades, existem leis orgânicas para que esses usuários de saúde mental possam utilizar uma carteira de identificação com a qual não pagam condução, cinema, teatro. Outra situação interessante deste Caps é que não há leitos para internação. Como o técnico trabalha diariamente com o paciente, é possível, muitas vezes, prever quando o paciente pode surtar, entrar em crise. Nesses casos, são tomadas as devidas precauções e cuidados com o paciente. 
 Ao sair dos hospícios, ficamos com muitas seqüelas. O nosso emocional fica 
quebrado, altamente sensível e inseguro para enfrentar a vida aqui fora. Ficamos 
com medo de sair na rua, com desconfiança de nos aproximarmos das pessoas. 
Muitas vezes, leva tempo para nos livrarmos dos efeitos da medicação excessiva 
que tomamos. Outro problema são as cobranças dos familiares, que também não 
sabem lidar com a situação precária, com o emocional do ex-interno. 
 Se, na minha época, existissem os “trabalhos substitutivos” creio que eu nem teria sido internado. Ainda hoje, em Curitiba, esses trabalhos não foram implantados. Já temos, no entanto, o Projeto de Lei nº 11.189/95, aprovado e assinado pelo governador Jaime Lerner.
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No Projeto, que agora é Lei Estadual, os “trabalhos substitutivos” teriam de 
começar a ser implantados no estado do Paraná um ano após sua aprovação pelo 
governador. A lei não saiu do papel, ninguém a conhece além dos donos de hospícios. Nas universidades e faculdades de psicologia não se ouve falar dessa lei. É tempo de mudar.
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PARA REFLETIRMOS
 BASTA ENTRARMOS NUMA ala proibida, onde permanecem confinados e escondidos dos olhos dessa sociedade de normais as vítimas do desleixo profissional, para ver que experiências e abusos indiscriminados causam ao ser humano! 
 Crime não é apenas matar o nosso semelhante. É também deixá-lo inútil, matando sua iniciativa e vontade própria, transformando-o numa besta humana.
AUSTREGÉSILO CARRANO BUENO 
 
 

BICHO DE SETE CABEÇAS, O FILME 
 QUANDO ESCREVIA ESTE LIVRO, Canto dos malditos, lá no fundo tinha certeza que daria um ótimo roteiro para cinema. Daqueles que o espectador sai, leva para o travesseiro na hora de dormir e no dia seguinte acorda com cenas do filme passando em sua mente. É isso que o Bicho de sete cabeças está fazendo com as pessoas que têm o privilégio de assisti-lo. 
 Laís Bodansky é uma das gratas revelações da cinematografia brasileira da 
década. Com o média-metragem Cine mambembe, o cinema descobre o Brasil ela foi 
premiada em Nova York, Havana e recebeu vários prêmios no Brasil. Inclusive da 
CNBB, “Margarida de Prata”. Bicho de sete cabeças já ganhou 18 prêmios, em 
Brasília e Recife. O Rodrigo Santoro está fabuloso fazendo Neto. Ganhou dois prêmios de melhor ator. Gero Camilo, duas vezes melhor ator coadjuvante. Que o Cezana está também premiado pela belíssima interpretação na segunda internação de Neto. Que meu amigo Sérgio Pena realizou um trabalho espantoso na preparação do elenco, a ponto de uma amiga psicóloga achar que fossem realmente pacientes dos chiqueiros psiquiátricos. O Luiz Bolognesi foi muito sensível no roteiro ao retratar com maestria a falta de diálogo entre pais e filhos, mostrando com fidelidade a dor e o sofrimento de milhares de vítimas dessa mesquinha psiquiatria, que seda, droga, tortura, e muitas vezes condena pessoas a uma morte lenta, apodrecendo em verdadeiros chiqueiros chamados de hospitais psiquiátricos.
 200
Ao pessoal da produção: Fabiano, Caio, Sara, Ariene, Rodrigo, o pessoal da trilha sonora, André Abujamra, Arnaldo Antunes, enfim todos que participaram dessa obra, meus agradecimentos, e que “Deus nos encha os corações de vitórias”, frase de uma de 
nossas pacientes tratadas e amadas por nós que lutamos pelos “trabalhos substitutivos” no Brasil, nas Américas e por que não em toda nave mãe. Faço também um agradecimento muito especial em nome do Movimento da Luta Antimanicomial, do qual tenho orgulho de participar. Vivíamos dando tirinho de espingarda de chumbinho para chamarmos a atenção da sociedade brasileira para a questão dos terrores que sempre foram os hospícios brasileiros, por mais de um século. E agora, com o filme, temos uma metralhadora que só dispara anseio e desejo da comunidade pela Reforma Psiquiátrica. Ela é urgente. Não podemos mais aceitar e nem nos desculpar por não conhecer-mos a realidade nua, crua de anos de omissão social, na qual colocamos pessoas em total confinamento, isolados, condenados a morrerem como escória de uma sociedade que se recusava a ver. Agora terão que ver, sentir, e, o mais importante, terão que agir. Obrigado a todos que lutaram por esse grande filme. Que Deus nos abençoe.
 
BIBLIOGRAFIA 
AQUINO, Eduardo. A fabricação da loucura. In: Veja. São Paulo, 22/2/1989, 
p. 110.
BHAKTIVEDANTA, Swarni, Abhay Charan. Retornando. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust, 1983.
SARGANT, W. & SLATER, E. Introdução aos métodos de tratamento físico em 
psiquiatria. Trad. de J. Caruso Madalena. 5 ed. Rio de Janeiro: Guanabara 
Koogan, 1978.
SZASZ, Thornas 5. O mito da doença mental. Trad. de Irley Franco e Carlos 
Roberto Oliveira. São Paulo: Círculo do Livro, 1974.

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